como fazer um país a partir duma bola de rugby



INVICTUS

De: Clint Eastwood

Com: Morgan Freeman, Matt Damon, Tony Kgoroge


Dia 31 de Maio, Clint Eastwood fará 80 anos. É curioso que o seu nome de baptismo seja Clint Eastwood Jr. Se este é o “júnior”, imaginem o sénior. Porque Clint é, afinal, um dos maiores homens do cinema. A sua sombra estende-se por décadas para trás e estender-se-á pelas próximas. É um gigante. Um gigante chamado Jr. Mas há mais. É que o em-breve-octogenário-Clint deveria, teoricamente, estar a viver de rendimentos e a fazer um filmito de quando em vez, para matar a saudade. Mas, na verdade, é o mais fogoso realizador norte-americano actual, com nove filmes na última década e, provavelmente, aquele que mais títulos tem nas listas de “melhores do século XXI até agora”: “Mystic River”, “Million Dollar Baby”, “Gran Torino”, só para citar os obrigatórios.

Por isso, é com deferência e um certo tremor nos joelhos que lhe pedimos licença para dizer: “Senhor Eastwood, este seu último ‘Invictus’ é… razoável.”

Sim, só razoável, mediano. Podia ser feito pelos Ron Howards desta vida. Acontece.

Tudo é contado rapidamente, o que é uma virtude. Em 1990, Nelson Mandela é libertado após 27 anos de cativeiro. O país negro exulta; o branco pragueja. Antevê o inevitável: Mandela não vem apenas para as ruas, vem para o país. E, com isso, pensam, será o fim dum tempo, dos seus valores, da terra que colonizaram e acabou por ser também a sua. Em poucos minutos, estamos já em ‘94. Mandela é Presidente e começa a surpreender: junta guarda-costas brancos e negros, mantém o gabinete de Frederik De Klerk e apregoa junto dos negros o perdão, o entendimento, a união do país e não a simples inversão de cor. Afinal, a África do Sul já não é só a pátria dos africanos; é também dos africânders.

Mas falta injectar o sentimento no corpo do país, o corpo profundamente marcado pelo apartheid.

E é aqui que entra o Rugby, um desporto de brancos que nada diz aos negros. E uma selecção nacional que veste com cores da bandeira dos brancos, com um nome – “Springboks” – dado por brancos, composta por brancos e um só jogador negro. É com este desporto, esta selecção e o Mundial a acontecer no ano seguinte, que Nelson Mandela vai criar a sua Nação. Una, pacificada, vitoriosa.

Material maravilhoso para um filme, mas era preciso levá-lo para longe do perigo da demagogia. Não levaram.

O guião de Anthony Peckham não cria um único momento de viragem. É, na realidade, incrível como se pega numa história que é, em si, uma bomba-relógio de conflitos e se faz um drama linear, sem confrontos, sem derrotados e vencedores. O último minuto de filme está lá estampado no primeiro. Não há actos. Há duas horas e um quarto em que tudo corre exactamente como tem de correr: cheio de boas intenções, redenções, sonhos concretizados. Claro que Mandela não poderia ser representado como um homem mau; mas tinha de ser representado como um homem. Mas não é. Aqui, Nelson Mandela é um santo e “Invictus” a sua canonização.

Morgan Freeman, que poderia ter aqui o papel de uma vida, é minado por essa lisura da personagem. E Matt Damon, a estranha escolha para o papel de François Pienaar, o capitão da selecção, não existe. Não parece um jogador de rugby, não parece capitão de nada – parece que seria levado pela primeira brisa que passasse no Cabo.

Sobram alguns bons momentos. A dado passo, alguém para pergunta a um jogador o que pensa sobre determinado assunto. Ele responde: “Eu não penso. Interfere com o meu rugby”. E é inevitável sentir arrepios ao ver a exígua cela em que Mandela viveu, ouvindo o fim do poema de William Ernest Henley: “I am the master of my fate: I am the captain of my soul”.

AB

i, 2010.01.28

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