viemos todos de alexandria
ÁGORA
De: Alejandro Amenábar
Com: Rachel Weisz, Max Minghella, Oscar Isaac
Só há dois tipos de espectadores de cinema (há muito mais, mas tem muito mais sex appeal começar um texto com este género de certeza. Portanto, dizíamos nós, só há dois tipos de espectadores de cinema): os que não resistem a um bom épico e os que adoram desprezá-lo. Mas “Ágora” coloca-se num lugar estranho – é um épico cerebral, sem batalhas que não cabem no plano, heróis viris de espada em riste e discursos de fazer inveja a Obama ou paixões arrebatadoras entre casais de semi-deuses. Vive, antes, da discussão, de argumentos, do conflito entre religião e ciência, e tudo isso há-de arrefecer os ânimos ao público braveheart e estimular, talvez, alguns frequentadores do King. Isso será bom? Depende. José Saramago adorou. Diz que é uma obra-prima tão grande que nem vai caber na cabeça de muita gente. E nós, banais mortais, bocejamos e vamos buscar um livro de Lobo Antunes. Para desenjoar.
Os motivos de “Ágora” são nobres. Acontece em Alexandria, em 391 d.C., um ano depois de o Cristianismo ter sido oficializado, e quando, lentamente, Roma cai para dar lugar à Cristandade. E é, acima de tudo, um filme audaz que transforma, com indetectáveis efeitos digitais, Ricasoli, Malta – cenário de “Gladiador” e “Tróia”, entre outros – numa imensa cidade onde o mundo passa e se renova.
No centro do conflito, está Hipácia (Rachel Weisz), a filósofa filha de Theon (Michael Lonsdale), que debate com os discípulos as grandes questões do Cosmos e se distancia pela razão do debate religioso que decorre lá fora. Primeiro, judeus e cristãos correm com os pagãos. Depois, os cristãos correm com os judeus. E, por fim, decidem correr com quem falta: Hipácia e todos aqueles que não se convertam à nova doutrina.
A verdade histórica do filme é duvidosa. Há personagens que morrem ou sobrevivem em data erradas, costumes sociais anacrónicos e uma série de coisas que – simplifiquemos – não seriam exactamente assim. Mas isso é o que todos os épicos históricos fazem. No entanto, há um incómodo que percorre o filme em ver, primeiro, a filósofa Hipácia reduzida a assuntos astronómicos e, depois, que esses assuntos astronómicos sejam tão incrivelmente visionários que antecipem aquilo que só seria descoberto muitos séculos depois por Copérnico, Kepler ou Newton. Ela desconfia que a terra seja redonda e não plana, que exista algo como a lei da gravidade, que o Sol esteja no centro e não a Terra e até palpita sobre os movimentos de rotação, translação e a hipótese de que este último seja elíptico. De um modo geral, essa personagem como as outras são tão extraordinariamente parecidas com o século XXI na forma de pensar e agir – veja-se as cenas em que dá aulas – que uma pessoa pergunta-se que diabo terá acontecido nos 1600 anos que passaram entretanto.
As personagens são, aliás, o elo fraco de “Ágora”. A Orestes (Oscar Isaac) e a Davus (Max Minghella, filho de Anthony) falta peso e o magnetismo fica entregue a Ammonius (Ashraf Barhom), um dos maus da fita. Fica também por perceber por que razão todos envelhecem menos Hipácia / Weisz.
É, no entanto, uma obra sólida e, insiste-se, audaz. E, se a audácia não lhe permite tocar todos os instrumentos tão bem quanto gostaria, deverá ser premiada com a atenção de muito público e, por que não?, as estatuetas de algumas academias. A forma como nos faz olhar para a religião da nossa civilização como aquela que foi, outrora, tão fanática e extremista como a que hoje nos perturba, é muito interessante. E o elogio tácito da liberdade de pensamento mais ainda.
Agora, se dão licença, vamos voltar para o Lobo Antunes.
AB
i, 2009.12.10
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