O caso é o caso
"1. O mundo é tudo o que é o caso.
1.1. O mundo é a totalidade dos factos, não das coisas .
1.11. O mundo é determinado pelos factos e assim por serem todos os factos.
1.12. A totalidade dos factos determina, pois, o que é o caso e também tudo o que não é o caso."
Wittgenstein
Num caso o menos importante é traição ou os traídos e muito menos como acaba ou porque acaba. O importante no caso é o caso.
O filme agora em cartaz, de Silvio Soldini, "Que mais quero eu" (cosavogliodipiù) permite uma boa reflexão sobre o tema e um ensaio de defesa desta minha convicção. O filme gira em torno do caso entre Anna (Alba Rohrwacher) e Domenico (Pierfrancesco Favino) conseguindo, com grande mestria, centrar o filme no caso e, logo, naqueles que o vivem enquanto ele dura, tornando secundário não só a traição e os traídos mas, sobretudo, o final (do caso e do filme). Em boa verdade talvez o filme nunca acabe porque podemos continuá-lo indefinidamente nas nossas mentes, aliás, alimentado por casos que conheçamos. E talvez possamos ver o problema ao contrário: é justamente porque o filme nos mostra como é a traição e os traídos, como é o fim do caso, que percebemos que o importante foi sempre só o caso.
Para começar a traição é um pormenor. Pode acontecer que A se interesse por B pelas razões mais variadas e estar casado ou envolvido com outra pessoa nesse momento, convenhamos, é uma probabilidade cósmica de fácil verificação. Daí que o interessante seja perguntar porque se constitui o caso, porque se mantém, o que o alimenta. Mas as respostas a estas perguntas cedo se demonstram inconsequentes: as razões são as mais variadas, uma teoria geral unificadora impossível (mas aposto que existem estudos). O grande contra-argumento ao que digo é que aquilo que invoco como pormenor, mesmo que o seja, cedo se torna central para a possibilidade de evolução do caso. Mas esse é justamente o meu ponto: o caso não tem que evoluir, se evolui já é outra coisa qualquer.
Exceptuados os casos daqueles que neles entram conscientes à partida de que o esteio familiar não é impeditivo, antes é, diríamos, pacificador (na língua comum "ele não vai deixar a mulher"), todos os que entram num caso permitem-se, nem que seja por um breve momento, centrar a sua vida nesse caso. E é sobre isso que é (também) este filme. E é isso que é tantas e tantas vezes cilindrado pela redução simplista de que um caso é adultério, traição. Poderá ser tudo isso e até mais, com tempo. Mas antes o caso é o caso.
Também visto da perspectiva daqueles que enquadram o caso mas estão fora dele - os traídos - se pode chegar a este tipo de reflexão. O filme oferece-nos dois tipos completamente distintos. A mulher de Domenico percebe rapidamente o que se passa, confronta-o e acredita que se tratou de uma superficial indiscrição. Já o marido de Anna é o simpático alienado da possibilidade de uma traição que, quando confrontado com a realidade, dá à mulher tempo para pensar. Muitas outras possibilidades de reacção haveria mas o seguro é que um caso convida a usar os gestos rotineiros da vida como modos de o camuflar. A natação torna-se uma hora de motel, uma viagem de trabalho um fim-de-semana de paixão. Apenas a mais dedicada paranóia terá paciência e capacidade para recatalogar toda a existência do cônjuge no sentido discernir quais as actividades que continuam a ser o que sempre foram e quais as que foram readaptadas ao novo calendário do caso. O filme não vai por aí. Ele oferece os traídos apenas como enquadramento, como possibilidade do fim do caso, como tantas vezes é. Mas eles não são realmente importantes porque importante não é o fim do caso. Insisto, ele sempre iria terminar, evoluir. Este filme não o trata como uma simples fuga de algo - nunca as vidas de Anna e Domenico são oferecidas como causadoras do caso - nem como um patamar para outra coisa qualquer - o filme termina quando termina o caso, sem sucumbir ao que vem depois.
Este filme mostra a relação que um caso permite, ainda que fugidia, condenada, asfixiante. Mas também poderosa, intensa, pulsante. É sobre os minutos que compõem o caso, desde que ele começa até que acaba. E isso conta, conta como modo de retratar uma face da humanidade, aquela que transgride por mil e uma razões e que aí busca ou encontra, passe o paradoxo, uma ordem, a sua razão. Pelo menos, até que comecem as perguntas. Mas isso já é outra história. Outro filme.
DM
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