Há vida depois da morte, mas não façam muitas perguntas


Estreias: HEREAFTER – OUTRA VIDA

De: Clint Eastwood

Com: Matt Damon, Cécile de France, Bryce Dallas Howard

Três histórias acontecem em três lugares diferentes. No Índico, a jornalista Marie LeLay (Cécile de France) é arrastada pelas águas do tsunami de 2004. Durante essa experiência traumática, é assaltada por visões de vultos envoltos em névoa, presumivelmente de uma outra vida. Mais tarde, é salva e regressa a Paris, mas não se consegue encaixar. Não consegue readaptar-se à vida de sempre depois do vislumbre de que possa haver algo mais.

Em São Francisco, um homem aparentemente normal tenta levar uma vida normal, mas, na verdade, George Lonegan (Matt Damon) está a recusar um dom que possui de forma inata: o de contactar com pessoas já falecidas. Apesar da resistência que oferece a todos os pedidos, acaba sempre por ceder e estabelecer contacto com os mortos daqueles que o procuram. George fá-lo para ajudar estas pessoas, mas para ele, o dom é uma maldição que lhe mina todas as tentativas de ter uma relação normal com os outros.

Em Londres, os gémeos Marcus e Jason (Frankie e George McLaren) tentam esconder da assistência social o alcoolismo e a toxicodependência da mãe. Se isto não fosse já suficientemente triste, no dia em que Jason vai a caminho da farmácia comprar medicamentos para a mãe, é atropelado e morre. Marcus parte então em busca de quem o ajude a contactar com o irmão no outro mundo. Estas três histórias vão cruzar-se.

Por mais estranho que pareça, este é um filme de Clint Eastwood. O clássico senhor Eastwood começa um filme com uma cena de cinema-catástrofe que reconstrói o tsunami à força de grandes efeitos digitais. Depois, parte para um drama acerca do sobrenatural. Em quaisquer outras mãos, isto podia ter corrido muito mal. Podia ter dado uma banhada das grandes (veja-se o que aconteceu a Peter Jackson em “Visto Do Céu”). Tentar falar seriamente de contactos com o além é território movediço de que “Hereafter” se salva exclusivamente graças ao bom gosto de Clint.

Sabemos hoje que o argumentista Peter Morgan (“A Rainha”, “Frost / Nixon”) imaginava que teria, algures no processo, tempo de fazer novas versões do guião – não esperava que se fizesse um filme a partir de uma primeira versão, nas palavras do próprio, “esquemática”. Steven Spielberg, o produtor-executivo, não entendeu assim e Clint também não. A verdade é que ficámos com três histórias que se ligam de modo forçado; que Matt Damon passa metade do filme em aulas de cozinha italiana sem que se perceba porquê; que a história dos gémeos é, para citar a despropósito Jerónimo de Sousa, “o fado da desgraçadinha”, entre outras pontas soltas ou de eficácia questionável.

O que “Hereafter” tem de melhor é falar de fantasmas com os pés assentes em terra. Eastwood retira destas personagens a mesma autenticidade e filma-as com o mesmo comedimento com que trata uma história verídica de crime. Mas não se fazem omeletas sem ovos – nem no mundo do além. Se um tema é batido e pantanoso, precisa de um ângulo muito original e bem defendido para vingar – e este guião não tem nada disso. “Hereafter” não questiona nada. Dá-nos como facto que haja uma vida depois da morte e que algumas pessoas consigam contactar com ela. Não dá qualquer argumento que possamos discutir. Não nos deixa sequer espaço para ficar a pensar. E isso é muito pouco estimulante, para não dizer que é pobre.

Por que foi Clint fazer um filme sobre o além? Talvez porque sim. Porque, como muito poucos (Scorsese, Coppola), tem idade e estatuto para fazer o que lhe apetecer, sem se preocupar com o que os críticos escreverão depois. Faz muito bem. Mas esperemos que lhe passe.

AB

i, 2011.01.20

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