Filmes para a Páscoa: O Rei dos Reis (1927)


Reza a história que aquando da estreia de Rei dos Reis em Portugal, a 13 de Março de 1928,   geraram-se verdadeiras romarias em direcção ao antigo Cinema Condes, apoiadas pelo próprio Patriarcado, de modo a que os crentes pudessem vivênciar  uma verdadeira aparição de Jesus Cristo.

O resultado foi, durante meses a fio, uma sala inteira de joelhos a rezar a cada vez que surgia Jesus Cristo na tela,  centenas de pessoas a chorarem ao sairem da sessão, por terem assistido aos milagres do Messias e um recorde de bilheteira e espectadores em Portugal que só viria a ser batido com E Tudo O Vento Levou (1939)

Estreado nos Estados Unidos no mesmo ano de O Cantor de Jazz (1927) (o filme que iniciou a revolução do cinema sonoro)  O Rei dos Reis foi o último dos grandes épicos da Era Dourada do Mudo e, a par de O Nascimento de uma Nação (1916) de Griffith e do cinema de Chaplin, a obra que causou maior impacto a nível mundial durante essa era. A RKO estimava que nos 46 anos seguintes à sua estreia o filme teria passado diariamente numa sala de cinema em alguma parte do mundo, uma longevidade única e notável, se tivermos em conta que a partir de 1930 o cinema mudo era considerado obsoleto e que pouco mais de 5% das salas Americanas ainda passavam filmes mudos nas suas sessões.


São varias as curiosidades e lendas em torno desta obra, como ser o filme inaugural do famoso Chinese Theatre de Los Angeles,  ou que a sua reposição no 50º aniversário do mesmo Cinema deu-se na véspera da estreia de Guerra das Estrelas.  

Na famosa cena da Ultima Ceia  a pomba que pousa sobre o Santo Gral terá sido, segundo o realizador Cecil B. DeMille, um mero acaso (ou obra do Divino) e não algo planeado. É também dos poucos (senão o único) filme sobre a vida de Cristo que representa Maria Madalena não como uma simples prostituta, mas como uma mulher de poder e influência em Jerusalém. Para os cinéfilos, talvez a mais interessante das curiosidades seja o facto da não menos emblemática cena da crucificação ter sido filmada na véspera de Natal, dia em que a produção recebeu a visita de D. W. Griffith e em que DeMille, um fiel aprendiz daquele que é o pai a gramática do Cinema Moderno, terá passado as rédeas ao seu mestre, deixando que este realizasse a cena. 
Sobre o filme propriamente dito, talvez o melhor elogio que se possa ser feito é que parece menos datado hoje do que quando Nicholas Ray assinou o seu remake em 1961. O lado mudo da obra confere-lhe nos tempos correntes uma certa qualidade sacra que quase nos leva a acreditar, tal como no Cinema Condes em 1928, de que aquele na tela é mesmo o verdadeiro Jesus Cristo e que as imagens que estamos a ver são na realidade parte de peça de arqueologia recuperada de há 2000 mil anos atrás.

O Rei dos Reis definiu para sempre o tom do género Bíblico,  confirmou durante mais de quatro décadas (e de certa forma até aos nossos dias) o rosto sereno e loiro do actor H.B. Warner como o modelo pelo qual todos os outros Cristos que o sucederam foram comparados. Trouxe avanços a níveis técnicos, de iluminação e efeitos especiais tão importantes como O Último dos Homens (1924) ou Metropolis (1927) , naquele que é o mais notável trabalho a preto e branco do director de fotografia J. Peverell Marley (fiel escudeiro de DeMille). 
Tal como Griffith fizera em O Nascimento de Uma Nação, desde cedo que o Cinema de DeMille reclama para a Sétima Arte a mesma legitimidade e grandiosidade artística da Escrita ou da Pintura, e talvez por isso mesmo os temas sacros tenham sido tão recorrentes e fulcrais na sua obra. 

Não se tratando do mais grandioso dos seus filmes Bíblicos (apenas porque esse titulo fica eternamente reservado a Os Dez Mandamentos (1956) ), esta é a obra que melhor representa DeMille enquanto realizador do mudo e nos leva a compreender porque é que foi dos poucos Autores (ao contrário de mestres como Griffith ou Stroheim), a conseguir saltar com sucesso para o cinema sonoro. 
Para retratar a vida de Cristo, DeMille supera-se e leva aos limites as capacidades do cinema da época. A monumentalidade épica, a sua assinatura enquanto realizador,  está patente em todo o filme (e salta à memória o terramoto que ocorre após a crucificação, de uma escala equivalente ao separar das águas em Os 10 Mandamentos), mas está da mesma forma presente a sua sensibilidade narrativa, a naturalidade com que os seus actores representam e com que cada uma das cenas se desenrola. Mais do que recriar quadros renascentistas e dar-lhes vida, o realizador serve-se de um imaginário colectivo sacro e confere-lhe uma fluidez e vida que nos faz esquecer que não estamos a assistir a momentos dialogados. 

E assim o filme fala sem necessitar de som.


From the Manger to the Cross (1912) e Intolerância (1916) podem ter-nos dado as primeiras versões da história de Cristo, Jesus de Nazareth (1977) e A Paixão de Cristo (2004) as suas interpretações mais realistas, A Vida de Brian o lado subversivo e pela sua natureza épica de aventura e simultânea presença e omissão do Messias, Ben-Hur é (e bem) o filme que pauta todas as Páscoas. 

Mas passados 76 anos O Rei dos Reis de DeMill continua a ser A Obra de Hollywood sobre a vida de Jesus Cristo, e um clássico incontornável para esta época do ano.

MS

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