A Balada do Homem Só – Jack Lemmon em Sonhos do Passado
Quando se referia a Jack Lemmon, Billy Wilder que foi quem o conheceu melhor e lidou mais de perto com o actor, costumava
afirmar que no ecrã mais do que o seu alter-ego ele era o seu “homem comum”.
Lemmon tinha uma fisionomia antagónica aos padrões tradicionais
de protagonista de Hollywood: Era baixo, magro, não era particularmente bonito
(tinha uma cara naturalmente cómica) e uma linha capilar que desde cedo
ameaçou a calvície. Sendo aproximadamente da mesma geração de Brando, o que não lhe trouxe logo as luzes da ribalta, Lemmon destacou-se inicialmente em comédias puras, e só aos poucos foi descobrindo o seu nicho de trabalho e de talento exatamente a
retratar os heróis do dia-a-dia com quem o espectador se conseguia identificar.
Uma faceta quase Keatonesca de conjugar a melancolia e
impotência do homem urbano, sem nunca perder de vista o seu lado mais ridículo
e cómico.
Numa carreira maioritariamente irrepreensível e sem “tiros
ao lado” de maior, é difícil apontar apenas um filme ou uma interpretação com
sendo a sua Opus Maximus. Quanto Mais Quente Melhor (1959), O Apartamento (1960), Escravos do Vício (1962) que lhe valeu o
primeiro Óscar, Síndroma da China
(1979) ou até mesmo o ultimo dos seus grandes papéis: Sucesso
a Qualquer Preço (1992) seriam fantásticas introduções para quem nunca viu
Lemmon no seu melhor. (e como não há amor como o primeiro, não resisto a
referir o primeiro filme que me lembro de ver com ele, uma obra divertida mas
não especialmente brilhante, hoje praticamente esquecida e difícil de arranjar,
chamada “A Guerra Entre Homens e Mulheres”
(1972) )
Mas talvez o filme em que Jack Lemmon mais sobressai como
protagonista e no qual mostra de forma evidente a sua vasta paleta de
ferramentas enquanto actor seja Save the Tiger/Sonhos do
Passado (1973), filme realizado por John G. Avildsen e onde o actor
desempenha um papel que lhe valeu o seu segundo Óscar.
Quando se referia a Sonhos do Passado, Billy Wilder costumava afirmar que o filme só tinha um defeito: não tinha sido realizado por si.
Reza a história que ao ler o guião, Lemmon terá dito ao
produtor/argumentista Steve Shagan, que necessitava de 24 horas para reflectir e decidir se
ficava ou não com o papel, pois não achava que ainda tivesse dentro dele a
força necessária para fazer justiça ao texto. Shagan perguntou-lhe como podia ter duvidas, se era um actor consagrado, respeitado pelos seus pares e até já havia vencido um Óscar com um papel igualmente duro em Escravos do Vicio. Lemmon discordou, apontando que era fácil fazer de alcoolico, bastava controlar o lado caricatural e de boneco da coisa, mas que este era um papel completamente diferente "quando acabar" disse, "estarei exausto e completamente despido emocioalmente em frente ao espectador... e sinceramente não sei se ainda tenho essa força em mim".
Percebe-se os receios de Lemmon em relação ao argumento de Shagan,
Sonhos
do Passado é um filme cru e duro, um melodrama pautado pelo desencanto que
reflete de uma maneira pouco comum para a época (e até para os dias de hoje) sobre
a morte do Sonho Americano e a falência moral da sua sociedade, tudo isto
apresentado sob a forma de estudo de personagem. O género de projeto onde um só
individuo carrega nos seus ombros todo o peso do filme.
Num tom que vai buscar muito da sua essência aos textos
teatrais de Arthur Miller, o argumento de Steve Shagan segue de forma
desencantada um dia na vida de Harry
Stoner, provavelmente o dia mais importante da sua vida, ou pelo menos, aquele
que a irá mudar para sempre.
Nestas 24 horas ele tem que apresentar a nova coleção de
roupa da sua empresa, que será determinante para o futuro da mesma, solicitar
uma prostituta para dormir com o seu maior cliente e de forma conseguir garantir
a venda a coleção, enfrentar uma
inspeção das finanças, que caso descubram a contabilidade mais habilidosa que
ele praticou nos últimos anos para manter o seu negócio à tona, significará a
sua falência, desgraça e prisão, deixar-se convencer pelo sócio que a única
solução é contratar um incendiário profissional, para sabotar uma das suas
fábricas, e desta forma salvarem-se com o dinheiro do seguro, vai sentir-se
atraído por uma jovema adolescente hippie e tentar aperceber se o seu casamento
de longa data ainda existe, ou é apenas uma fachada.
Visto em 2013, conseguiríamos colocar Harry Stoner (o
personagem de Lemmon), numa série como Mad Men. Ele é esse género de
homem: veterano da Guerra da Coreia,
preso a uma ideia de América onde a força do trabalho e da moral se sobrepõem
aos outros valores e são garantia de sucesso e felicidade, mas que não se
apercebe que ao chegar à meia idade deixou-se corromper totalmente pelas regras
víciadas da sociedade.
Para Harry ele cumpriu a sua parte do acordo para
alcançar o Sonho Americano: criou a sua própria empresa, tem uma boa casa com
piscina, uma família exemplar, uma filha a estudar nas melhores universidades,
mas apesar de cumprir as suas funções não se consegue libertar do peso de ser
um homem profundamente infeliz e a viver numa total sensação de vazio,
assaltado constantemente por visões dos traumas de guerra e agarrado à ideia
utópica da felicidade vivida na infância.
Longe de ser um virtuoso como Wilder, John G. Avildsen foi dos
realizadores da geração de 70 que melhor compreendeu e retratou o lado humano
da crise moral vivida pelo povo Americano durante aquela década. Tal como viria
a fazer três anos mais tarde com Rocky
(1976), o realizador teve o condão de saber interpretar o guião e de não o
complicar, realizando de uma forma limpa, quase documental, em longos planos de
um só take, em que a acção se desenrola fluidamente, permitindo-lhe (e ao
espectador) focar-se na acção, retirando desta forma o melhor do texto e por
conseguinte dos seus atores.
Da reunião que lhe garantiu trabalho, o realizador fez
apenas uma exigência: uma vez a filmarem ele apenas queria ver Harry Stoner no
grande ecrã, Lemmon teria que se responsabilizar que se despojaria de todos os
tiques, manias e vícios de representação que adquirira ao longo dos anos. (um
processo que se tornou tão obsessivo para o actor, que chegava a refazer takes
para controlar as suas tradicionais subidas de sobrancelhas, uma das suas
imagens de marca).
O resultado é um Lemmon como nunca antes o vimos: negro,duro
, sarcástico, com uma paixão enorme pela vida, que ainda arde no fundo mas que
teima em não sair, uma entrega total a um personagem em queda e só... incrivelmente só.
É talvez a principal dadiva do actor para o filme, a forma
como retrata, sem tiques nem adereços, a solidão do homem comum. Solidão que ganha contornos máximos em três
cenas de antologia: A ida de Harry à praia, seguido do final onde assiste a um
jogo de baseball entre miúdos e se apercebe com tristeza nostálgica que já vai
longe o tempo em que podia participar em brincadeiras de rua e o jantar com a
prostituta, um dialogo que podia ser um monólogo de cada actor, um beber um
copo a dois em que cada personagem está de tal forma embrenhado em si mesmo,
que de pouco lhe serve a companhia.
Apesar das nomeações para Óscar e da vitória de Lemmon, a pouca receptividade do publico (ninguém gosta de se ver espelhado no grande ecrã), ditou que Sonhos do Passado fosse votado a um quase esquecimento, ao ponto de hoje em dia não figurar (erradamente) nos melhores filmes dos anos 70.
Ou como Avildsen afirmou “it’s an shame people don’t talk
more about that movie, not for my work, but for Jack. His performance is up there
with the best... it’s straight out of the Godfather!”.
MS
MS
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