trânsito congestionado junto à condição humana
LAR DOCE LAR
Realização: Ursula Meier
Com: Olivier Gourmet, Isabelle Huppert
Ok. Todos sabemos que os críticos são odiados. Aliás, todos odiamos críticos – os próprios críticos não se guardam grande amor. Estão ali lado a lado com os fiscais da EMEL e os advogados, com a vantagem de não se identificarem pela farda ou pela placa pendurada à porta. Entre muitas razões legítimas para o ódio, há, apesar de tudo, um ou dois motivos equívocos. Um deles parte do erro de tomar as estrelas pela crítica. Isto é, antes de vociferar contra o crítico que só deu uma estrela ao filme que amámos, convém lê-lo primeiro, para entender as suas razões. Depois, então, vocifere-se. Ou não. Mas com fundamento. Aqui, nos “Bilhetes Para o Cinema”, a escala vai do “um” ao “cinco”, conforme se considera a obra péssima, má, razoável, boa ou excelente. Noutros sítios, é diferente. Cada olhar é diferente. Importa é que nenhum deles, entre críticos e espectadores, se tome por único.
Serve o prelúdio para falar de uma hesitação na hora de atribuir as estrelas a “Lar Doce Lar”, “Home”, no original. Três ou quatro? Venceu o quatro. Agora, explica-se porquê.
“Lar Doce Lar” é a história de uma família que construiu a sua casa na berma de uma auto-estrada cuja construção foi abandonada há dez anos. Não sabemos há quanto tempo está lá esta família, nem o porquê de se ter afastado do mundo e ido viver ali, naquele isolamento árido, mas silencioso e harmónico por si mesmo. É evidente, desde os primeiros minutos, que as coisas não ficarão assim. E que, a qualquer momento, a auto-estrada será aberta ao trânsito. E assim acontece. Se quisermos ser pragmáticos e não aceitar este ponto de partida, o filme tem de ficar pelas três estrelas. No mundo real, uma família que se farte da vida nas cidades, vai para o campo; não para a berma de uma auto-estrada abandonada. Se vai, é porque está - em bom Português – a pedi-las. Mas, se quisermos levantar os pés do chão, aceitar que isto é cinema e entrar no jogo proposto por Ursula Meier, então “Lar Doce Lar” é bom. Um quatro estrelas sólido, original e perturbante.
Marthe (Isabelle Huppert, excelente como não sabe senão ser) e Michel (Olivier Gourmet, podem lembrar-se dele em “L’Enfant” ou “Le Fils”, dos irmãos Dardenne) vivem longe do mundo com os três filhos, Judith, Marion e Julien. Só Michel trabalha, num emprego que desconhecemos, e vai e vem, diariamente, para sustentar uma casa que decidiu viver por si só, em silêncio. O quotidiano que levam é tratado pelo burlesco e por uma certa leveza que não prenuncia a violência que aí vem. Um dia, o governo decide abrir a auto-estrada e, a partir daqui, é a descida ao inferno. Meier, uma jovem franco-suíça que se estreia na realização de longas-metragens, coloca-nos dentro daquela casa, entre aquela família. E faz-nos sentir até aos ossos a clausura violentada pelo ruído do mundo que passa, anónimo, na estrada. O sufoco vai aumentando minuto a minuto. Cada vez passam mais carros, mais rápido, com mais ruído e mais fumo. Até que queremos sair dali. Mas a família não sai. A família chamada Robinson, como Crusoe, não aceita deixar a sua ilha. E afunda-se numa espiral de loucura. Selam portas e janelas com blocos e cimento. Trancam-se dentro da casa que é agora uma cela. E, ao som ensurdecedor do mundo, junta-se a escuridão.
Exercício sobre a ideia de que ninguém vive só ou metáfora de outra coisa qualquer, “Lar Doce Lar” deixa-se aberto a interpretações. Mas faz-nos passar um mau bocado. E isso é estranhamente bom.
AB
i, 2009.07.02
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