A estupidez da morte - O casal

Ozon dá orgulho à velha Europa. Eis uma frase perigosa nos tempos que correm. Mas é o contexto que deve perturbar, não as palavras. E Ozon dá orgulho à velha Europa porque olhando para o seu filme e o tratamento que nele dá à morte e à homossexualidade, só para nomear um outro tema, percebemos que a Europa conhece melhor a alquimia humana.

À morte Ozon não passa um atestado de menoridade. Pelo contrário. Percebe-se que Ozon, neste e noutros filmes, encara os (seus) temas com respeito e para eles tenta encontrar uma técnica de comunicabilidade. Mesmo quando anda perto do incomunicável. Aqui não anda perto. Aqui coloca-se e circunda o incomunicável. Da morte todas as palavras são ficção. E a reacção à morte, retirada a solução comum dos mitos - religiosos, sociais, familiares - que nos seguram e amparam e servem de desculpa para com a morte (dos outros e raramente a nossa) lidarmos tudo o que fica é a estupidez. A estupidez humana é, afinal, a mais honesta reacção à morte. Aquela estupidez, para nos mantermos em França, de que Montaigne tanta fala e maldiz, essa é a melhor reacção à morte. E essa mesma que Ozon utiliza e está (sobretudo) personificada no casal que acolhe Romain. Falta de juízo, falta de discernimento. Mas também que juízo, que discernimento pode haver perante a morte. Que razão? Não há uma para a abordagem de Jany, Valeria Bruna Tedeschi, que pede a Romain, depois de o ter visto por uma única vez, para dormir consigo. Ela que o marido observa, marido estéril, pede a Romain, com meses de vida e homossexual, que seja pai de um filho que nunca havia imaginado, que irá negar para depois aceitar. E, por fim, instituir herdeiro, acto simbólico em que se perpetua em vida aquilo que se pretende enganar à morte.

Visto até esse momento O Tempo que resta parece um drama que se torna uma comédia. A lembrar Funny Games, de Haneke, na cena do telecomando (espero que se lembrem). O que há aqui é um Ozon com o espírito limpo que optou pela estupidez, perfeita na encarnação do casal - repare-se como o marida (a)parece sempre meio aparvalhado e estúpido - como forma de respeitar a morte, de demonstrar na melhor maneira que encontrou a comunicabilidade humana possível para ela.

A estupidez da morte recebe aqui um supremo elogio. Aceita-se a morte como a suprema estupidez, no sentido puro, da falta de inteligência sobre ela, uma impotência de juízo, uma impossibilidade discernimento, perto da qual tudo parece (por mais que seja inverosímil) menos estúpido, mais compreensível.

DM

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