Sem abrigo / A pena perdida

Duas curtas, um texto. Porquê? Não apenas porque vi os dois filmes de seguida mas porque encontrei neles uma continuidade, em parte óbvia (os mesmos actores, a mesma Lisboa), em parte escondida, uma pulsão crítica fortíssima.

Infelizmente, não consegui ficar para o terceiro filme da noite, Debate da Loucura e do Amor. Mas está já prometido a mim mesmo o seu visionamento, assim que possível.

Tudo isto se passou ontem à noite na cinemateca, na presença dos três envolvidos, na realização, produção, argumento, montagem e interpretação, Marta Ramos, Mário Fernandes e José Oliveira.
O primeiro dos filmes, Sem abrigo, uma curta de 40 minutos, foi o meu filme preferido. Qualquer coisa de Renoir, Carax, Sokurov e Kitano (um prólogo a Dolls) passou pela tela, mas sobretudo, muito de Marta, Mário e José.

Tenho várias razões pessoais para ter gostado deste filme, e vou ignorar a mais óbvia, conhecer dois dos co-autores. Sem abrigo é um filme sobre a minha Lisboa, sobre a Praça das Amoreiras, a Praça das Flores, o Largo Agostinho da Silva, o Cais do Sodré. E pode dizer-se que esta geografia lisboeta foi elevada a personagem em Sem Abrigo. Lisboa, pareceu-me, é neste filme a personagem principal, e não apenas em espaço, mas também em som. Claro que Lisboa, sobretudo para quem não a tem como sua, pode funcionar aqui como a Cidade e não tenho dúvidas que essa é também a intenção dos realizadores, que seguem dois anónimos personagens, um Homem e uma Mulher, pelas ruas da cidade. Mas, mesmo assim, a história das personagens e dos seus desencontros e encontros é, acima de tudo, a história da cidade, dos seus barulhos, das suas perspectivas, das suas figuras. O que acontece às personagens acontece porque a cidade o provoca: as deambulações, o desemprego, a criatividade, a ausência. Em que ser sem abrigo é explorado à partir da exposição que as pessoas demonstram quando atentamos nelas. E como isso - a desatenção, a invisibilidade provocada pela cidade - pode bem ser combatido com um olhar cinematográfico.

Um filme-poema, em que muitas vezes me apeteceu começar a improvisar uma poesia sobre o ritmo da tela.

A pena perdida estende-se por 70 minutos. É menos inocente do que Sem abrigo, o que em si mesmo é ainda um eufemismo: há qualquer coisas de manifesto em A Pena Perdida. Mas igualmente qualquer coisa de libertário, de corajoso e de, como o próprio José Oliveira refere na folha da Cinemateca alusiva ao seu filme, solitário. Há, mais do que realidade, uma ultra-realidade. Uma realidade carregada, de cão puxado atrás, e pronta a ser disparada. E dispara-se com certa precisão, umas vezes em favor da clareza, outras contras as trevas. Aliás, a luz e os seus jogos são uma presença contínua em A pena perdida (gosto particularmente da passagem do Disorder, perdão, do Transmission). É verdade que, como disse, continua Lisboa e continuam os mesmos actores, mas neste filme respira-se melhor a erudição cinematográfica do realizador, completamente encarnada em gente. A cena inicial, de dois cowboys modernos conversando por baixo da música western (não country, western) é uma maravilha e um bom tributo a esse género. E há também maior uso do monólogo e do diálogo, sempre canalizado para a crítica do poderes estabelecidos e do status quo dominante, que reforça ainda mais o carácter libertário do filme. Este é um filme-cinema. Se quisermos prosseguir nos palavrões, é um filme meta-cinematográfico pois é um filme performativo, um filme que é simultaneamente um speech-act. Aliás, podia bem chamar-se, tendo a cena final como remate magnífico, Como fazer coisas com filmes.

Ainda assim, e esta é já uma questão de estratégia, de filosofia, a liberdade não tem que ser apenas torrente. Há também liberdade no desejo da disciplina do ritmo, na busca de uma forma que esteja à altura do caminho e o complete. É isso que creio podermos esperar (ou desejar) dos próximos filmes.

Domingos Miguel

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