O fado de Oulman na grande noite de Portugal


Estreias: ALAIN OULMAN – COM QUE VOZ

De: Nicholas Oulman

Com: Alain Oulman, Amália Rodrigues, Mário Soares

Começa assim: duas tias octogenárias de Alain Oulman, sentadas na sala, prestam um depoimento para a câmara – mau, pensamos. Tão televisivo. Vai seguindo, regressando amiúde às tias que dizem e se contradizem, entre fotografias do biografado e depoimentos em estilo clássico de outros conhecidos do homem em epígrafe. Vai-se notando um certo descuido: um tapete de rato em estado impróprio sobre a secretária dum antigo colega; a lapela dum nobre guitarrista polvilhada de um pó branco legal, mas nada telegénico. Aos poucos, conta-se de modo muito bem comportado a história de Oulman desde pequenino: o miúdo que estava sempre a ler e era péssimo no desporto, o desgosto de um pai que preferia atletas e homens de negócios a intelectuais e artistas, a tragédia de morrer o filho varão na Segunda Guerra e de o pequeno Alain ser forçado a assumir o papel que nunca quis: o de sucessor do império do pai, francês imigrado em Portugal e homem prudente de boas relações com o regime ditatorial.

Sem dar por ela, vamos mergulhando no filme que segue saltitando entre imagens de arquivo e depoimentos. Agora, Alain não dorme. De dia, trabalha para o pai; à noite, para ele próprio. Escreve, faz teatro, dá-se com actores e músicos, cantores e poetas. Está um homenzinho e vai casar com uma jovem actriz. Tem filhos, Raul Solnado leva-o para o Villaret e, de repente, está a compor os discos mais revolucionários da história de Amália Rodrigues e do fado. Músicos e musicólogos explicam-nos como ele foi de encontro ao anseio de Amália em cantar grandes poetas e grandes poemas, aqueles que não cabiam na métrica simples dos fados populares que a tradição ferozmente cultivava. Demonstram-nos como Oulman se imiscuiu no seio da propriedade sagrada de um país pouco avesso à mudança e a transformou de dentro para fora, adensando, desenvolvendo, abrindo o fado para fora do bairro popular, de encontro a um público que, dantes, só ouvia música erudita. Descobriu os grandes poemas e os grandes poetas – David Mourão-Ferreira, Alexande O’Neill, o próprio Camões – e entregou-os a Amália, a voz que tinha vindo ao mundo para cantar aquelas palavras naquelas melodias e cujo destino nunca se teria cumprido sem a intervenção deste francês do Dafundo.

Há mais, muito mais. Falam Mário Soares e Maria Barroso, Manuel Alegre e Jorge Sampaio (não se encontravam desde o último Conselho de Estado), Camané e Carminho sobre a herança musical; David Ferreira e Fernando Lopes sobre amizade e poesia; Zita Seabra sobre a mensagem política, Eunice Muñoz, João Perry, Amos Oz, a ex-mulher e as tias, sempre as tias.

Oulman haveria de ser preso pela PIDE, libertado por intervenção especial do governo francês e enviado de regresso a um país onde, afinal, não nascera. Continua a trabalhar para o pai como um bom menino enquanto se torna editor de Soares, Oz e Patricia Highsmith e continua a compor uns fados que manda em cassetes para Amália.

Amália domina tudo. Fala, canta, ri. Até no casamento de Oulman, merece mais atenção que a noiva. É dela que Oz fala quando Oulman só quer discutir a tradução do livro. É ela e o país, ela e a sombra delicada de Oulman, numa relação de sedução silenciosa que duraria até ao fim da vida.

E, de repente, fomos levados. O filme bem comportado, académico e demasiado televisivo tinha-nos arrastado para longe. Só não sabíamos se era pela história de Oulman, se pela nossa própria. É que este anti-herói diplomático e com ar de bom rapaz é a chave que abre um país que nunca deixámos de ser e que se revela aqui em todo o esplendor: belo e triste, maravilhoso e tacanho.

AB

i, 2011.01.27

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