O Óscar para Kathryn Bigelow


No Natal passado ofereci a um grande amigo o filme Strange Days, de Kathryn Bigelow, uma película de que muito gosto, embora, curiosamente, não a possua. O meu amigo, quando questionado por mim sobre se havia gostado do presente mostrou-se morno: o filme não era mau mas não era arrebatador. Creio que foi assim que muita gente encarou a nomeação de Bigelow, nos Óscares deste ano, com Hurt Locker: o seu cinema não é mau mas também não é arrebatador. Confesso que dela só vi dois filmes e ambos conseguiram ganhar um espaço especial na minha cinefilia. O primeiro - e o único filme de Bigelow que detenho - é Point Break (Ruptura Explosiva), o clássico de surf e assaltos a bancos que opõe Keanu Reeves a Patrick Swayze. O outro é, como já referi, Strange Days. Tenho uma falta grave a confessar nesta cinematografia pessoal: trata-se de The Weight of Water, que combina a realização de Bigelow com a presença de uma actriz de que muito gosto, Sarah Polley. Fora isto basta percorrer o IMDB para perceber que o cinema de Bigelow é um cinema de acção e de algum fascínio pela técnica e pela tecnologia. Daí que, como raios ganha Bigelow o Óscar e logo este ano?


Creio que a resposta, como quase tudo na vida, está no timing. Não me interpretem mal, esta introdução serviu para explicar que a base está lá, Bigelow é uma realizadora talentosa mas falta(va)-lhe qualquer coisa. Algumas pistas de reflexão possíveis são:

1. O cinema de guerra - Conto já mais de 20 títulos na minha dvdteca de cinema de guerra, tema sobre o qual recorrentemente escrevo aqui e posso com alguma segurança afirmar que Hurt Locker é um excelente filme de guerra. Li há alguns dias uma boa referência ao 2001 de Kubrick a propósito de Hurt Locker mas creio que a verdadeira comparação com Kubrick, pese embora mais óbvia, deve ser feita contra Full Metal Jacket. Não tanto nas opções estéticas mas na tensão psicológica que a contenção narrativa permite e provoca. Hurt Locker não é um épico de guerra, nem na pirotecnia (no pun intended) nem nas alegorias trágicas. Quando falo de tensão psicológica não quero negar que ela perpassa por muitos outros filmes de guerra, quero apenas dizer que em Hurt Locker ela condensa a própria guerra e, de certo modo, se sobrepõe a ela. Mesmo num filme quase perfeito como The Thin Red Line a opção é outra: há tensão psicológica mas o toque cosmogónico de Malick é o oposto da micro-narrativa indutiva em que Bigelow é especialista. Aquilo que em Malick se deduz, em Bigelow induz-se. A profundidade da guerra e da vivência humana nesse estado permite quase tudo e daí o meu fascínio por filmes de guerra. Aliás, a tradução portuguesa é, milagre, muito feliz: Estado de Guerra é uma óptima descrição do filme, onde é mais importante o estado das personagens do que a própria guerra, mesmo se sem ela não se poderia ter feito este filme.

2. Iraque - Não duvido que a Academia tenha sido sensível ao tema. Mais, creio que viu em Hurt Locker a melhor possibilidade de homenagear o cinema de guerra e a guerra do Iraque sem cair em lugares-comuns. O filme de Bigelow permite isso, porque se é um filme sobre a guerra no Iraque é, sobretudo, uma reflexão sobre o ser humano, utilizando o melhor laboratório até hoje encontrado, a guerra.

Daí que tenha falado em timing: é um filme bom no momento certo. E, como se diz de certos álbuns, é um filme para se ir vendo e se ir gostando. Talvez não entre logo à primeira. O cinema de Bigelow é um cinema policial, conta um história acima de tudo. Mas em Hurt Locker o estado de guerra e a interpretação dos protagonistas permitiu uma profundidade de campo que adiciona camadas e camadas mais finas de interpretação e reflexão. Creio que é esse o seu segredo: usar uma história aparentemente simples para reflectir sobre o ser humano. Mais do que qualquer coisa Hurt Locker é uma fábula. Porque em guerra somos sempre bichos.

DM

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