a loucura é um lugar estranho
SHUTTER ISLAND
De: Martin Scorsese
Com: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley
Scorsese é um BMW. Um Barca Velha. Uma Montblanc. Uma suite do Ritz. É luxo. Bilhete para filme dele devia ser mais caro. Que se pague mais não sei quantos euros por uns óculos patetas e umas alucinações 3D não faz sentido. Mas ainda faz menos pagar o mesmo por um Scorsese – na mesma acepção em que falamos de “um Picasso” – e por um filme comum, por uma banal imitação. Mas o cinema é pouco aristocrata e isto um desabafo de quem anda de Peugeot, bebe Chaminé, escreve com não sabe bem com o quê e, às vezes, fica no Íbis.
“Shutter Island” é um prazer, não um Scorsese puro. Mas tivemos, ainda bem recentemente, “The Departed” – não nos podemos queixar. A Paramount esteve para entregá-lo a David Fincher, mas acabou por ir parar as mãos de Marty. É um thriller psicológico com twist final e criminosos dementes metidos num cenário claustrofóbico – tudo matéria ao jeito de Fincher, de facto. Mas Scorsese dança a qualquer compasso: agarra no guião e no best-seller de Dennis Lehane (autor também de “Mystic River”) e faz com uma facilidade incrível aquilo que centenas de aprendizes se desunhariam para conseguir. Como sabemos que foi com uma facilidade incrível? Não sabemos. Mas um tipo está a ver o filme e não consegue deixar de imaginar Marty com um olho na câmara e um pé atrás das costas.
O filme começa com o agente federal Teddy Daniels (DiCaprio) a conhecer Chuck (Ruffalo), o seu companheiro nesta missão, a bordo do ferry que os leva de Boston para Shutter Island. Estamos em 1954 e tudo sabe, de facto, a cinema fifties: o contorno das personagens desenhado como se aquele barco nunca tivesse saído do estúdio; os chapéus e gabardines que Robert Mitchum não desdenharia; a música a acentuar o drama; as frases secas entre os dois homens, não sabendo bem o que os aguarda. Depois, a ilha ergue-se do mar: um rochedo inacessível, uma prisão de pedra. Os agentes encontram os polícias que os vão levar à única coisa que existe ali: uma instituição psiquiátrica para criminosos com doença mental. Tudo cria suspense para o que vai acontecer: a personagem que vão conhecer, o sítio aonde não podem entrar, a situação que devem evitar a qualquer custo. Ao fim de poucos instantes, olhamos em volta: fomos encerrados com DiCaprio e Ruffalo numa Alcatraz mental.
Teddy e Chuck estão ali para investigar o desaparecimento de uma paciente: Rachel Solando. Matou os três filhos, afogando-os um a um no lago e sentou-os à mesa, depois, enquanto comia. Agora, desapareceu de uma cela trancada, por corredores guardados, numa ilha donde não se pode sair a não ser por um ferry que não passou. Na manhã daquele dia, também o psiquiatra que se ocupava dela partiu. De férias, dizem os responsáveis. Tudo soa mal. Que escondem a Teddy?
Vão chegando personagens. Cada uma com um grande actor dentro; cada uma mais ambígua que a anterior. Os médicos Ben Kingsley e Max Von Sydow, os polícias John Carroll Lynch e Ted Levine. Os doentes Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Elias Koteas, Jackie Earle Haley. Ainda por cima, cai uma tempestade. Os relâmpagos iluminam o rosto de Kingsley, aliás, Dr. Cawley – tão clássico. Tão perfeito. O agente Teddy começa a ser atormentado por dores de cabeça e recordações da mulher que morreu e dos homens que matou na guerra. É inútil olhar para trás – já não há saída de Shutter Island.
Só há um problema: é muito possível que a solução do mistério lhe passe pela cabeça logo nos primeiros instantes, quando Teddy e Chuck chegam à ilha. E isso estraga a surpresa, mas permite apreciar, ainda mais serenamente, a minúcia com que trabalham os mestres.
AB
i, 2010.02.25
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