da terra média para a vida em carne e osso
VISTO DO CÉU
De: Peter Jackson
Com: Mark Wahlberg, Rachel Weisz, Stanley Tucci
O mundo ficou louco com Peter Jackson à primeira adaptação do “Senhor dos Anéis”, o livro que o cinema se resignara a ser “infilmável”. O realizador que só fanáticos do gore e cinéfilos da linha dura conheciam passou, então, a capa de revista, homem do ano e outras condecorações com que a cultura pop tece os seus processos de canonização. O neo-zelandês tornou-se o herói dos anos 2000, fez um novo “King Kong”, produziu o fabuloso “Distrito 9” e juntou-se a Steven Spielberg. Enquanto prepara uma incursão pelas aventuras de Tintin e o regresso à Terra Média, deixa os óculos e perde umas valentes dezenas de quilos. E, algures entre tanta actividade, compra os direitos do bestseller de Alice Sebold “The Lovely Bones”.
Seria outro livro com monstros peludos, batalhas impossíveis e muito palavreado para transformar em efeito digital? Não. Era a história duma menina assassinada por um psicopata, que contava, a partir do céu, a sua história e a história do que aconteceu depois – tudo envolvido por uma pacata cidade da Pensilvânia, em 1973.
Talvez Jackson precisasse de descansar das grandes produções. Talvez quisesse fazer um pequeno filme e mostrar como também podia ser um realizador dramático, realista, capaz de explorar conflitos humanos sem carnificinas e dragões. Talvez. Mas nunca saberemos que queria ele, afinal, com “Visto do Céu”, porque não se percebe para que serve este filme que se estende por duas longas horas e um quarto. Que muda de género, saltitando entre o drama, o thriller e o fantástico, como quem experimenta camisas e acaba por sair com as três. Que nem serve à dor, nem ao mistério, nem à esperança.
Bem sei, leitor. Nos cartazes espalhados pela cidade e nas promoções televisivas, vêm citadas umas críticas encomiásticas de alguma imprensa estrangeira. E que filme que estreie na semana depois dos Óscares sabe a café frio. Mas não estamos a ser injustos: “Visto do Céu” é quase um desastre.
O início prometia. Com a jovem Susie Salmon (Saoirse Ronan) a apresentar, de modo sucinto e inteligente, a vida que tinha, a família, o hobby da fotografia e a paixão por um rapaz mais velho, para depois anunciar de chofre que tudo acabou quando foi assassinada aos 14 anos. A partir daqui, há três filmes: o policial que segue as pistas do crime; o drama que acompanha a família dividida entre procurar o corpo de Susie e seguir em frente; e a fantasia digital que nos oferece Susie a falar duma espécie de limbo entre a Terra e o Céu. O primeiro filme é bom, o segundo é profundamente incompleto, o terceiro é absurdo. Pior: há uns instantes “Sexto Sentido” em que se dá o contacto entre o além e o mundo dos vivos, que não só se revelam totalmente inconsequentes, como ainda matam qualquer hipótese de levar a sério o drama familiar.
Os actores fazem o que podem, mas não há muito por onde ir. Basta dizer que Rachel Weisz tem um papel mínimo – e é a mãe de uma criança assassinada. Mark Wahlberg tenta fazer o pai que Ryan Gosling recusou por divergências criativas com Jackson. Susan Sarandon é uma avó que começa por fumar, depois bebe e, por fim, desaparece da história. Michael Imperioli é o detective que investiga o caso e que foi amputado da sua razão de existir no livro: ser amante da mãe da criança desaparecida. Quanto a Stanley Tucci, fica por saber como foi que a Academia o descobriu debaixo de uma peruca loura, lentes de contacto e bigode postiço e ainda o nomeou para melhor actor secundário.
Peter Jackson é óptimo para monstros e sangue. Para sentimentos e seres humanos, talvez seja melhor telefonar a outro.
AB
i, 2010.03.11
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