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Foi pelas 15:15 do dia 2 de Janeiro de 1995 que, na sala 1 do Monumental, vi Pulp Fiction. Sozinho. Apesar de algum alarido em torno do filme não sabia bem ao que ia.
A minha vida não mudou com Pulp Fiction mas Tarantino, com esse filme, muito mais do que com Cães Danados, deixou feita uma promessa. Uma promessa de que as coisas podem mudar. Ou talvez tenha sido só a lembrança de que podemos mudar as coisas. Olhar para elas de uma forma nova. Cada jogo de cartas começa com as mesmas cartas. Mas é preciso baralhar.
Tarantino tinha feito isso com Pulp Fiction, era a sensação, ainda meia zonza, com que saí da sala 1 do Monumental, nessa tarde fria de Janeiro de 1995.
Agora são 00:27, estão 30 graus segundo o termómetro do meu carro, e eu saí há uma meia hora da sala 1 do Monumental onde, sozinho, acabo de ver Deathproof, o novo filme de Tarantino.
Com três longas metragens pelo meio (quatro se contarmos Sin City) e doze anos passados dir-se-ia que, mesmo com um bom filme, Tarantino não poderia repetir a promessa de Pulp Fiction. Poderia apenas relembrar-nos de alguma coisa mas as pessoas raramente gostam que lhes chamem à atenção.
Mas com Deathproof, e ainda bem que nada li sobre o filme antes de o ir ver, Tarantino não se limitou a fazer um bom filme: fez uma obra-prima. E não se limitou a lembrar-nos de que baralhando as mesmas cartas se começa um jogo novo, voltou a fazer-me uma promessa: o cinema ainda tem espaço, para sem grandes invenções e efeitos especiais, ganhar com uma nova perspectiva das coisas. Uma visitação tem muito de original.
A primeira mecha que nos chama a atenção - creio que voltarei a isto noutro texto - é a imagem de marca de Tarantino: a proliferação atenta de pormenores e detalhes. Para quando um Oxford Companion to Quentin Tarantino? Para Deathproof valia a pena fazer um autónomo...
Esse fogacho incendeia todo o filme e é, juntamente com a fabulosa interpretação de Kurt Russell, o esqueleto de Deathproof. Esqueleto bem posto à prova, desde logo pelo esquartejamento que sofre ao fim da primeira hora, quando um acto acaba e outro começa. Vira o disco e toca o mesmo? Sim, mas como qualquer amante de vinyl sabe, é no lado B que se encontram as preciosidades.
É verdade que com um esqueleto destes a existência torce mas não parte, o que permite a Tarantino quase tudo o que deseja. Não se trata só da homenagem a um estilo/época - o Grindhouse - que fica remetido para a forma mais do que para qualquer outra faceta do filme, trata-se de, com a desculpa da homenagem e da forma, reinventar o cinema. Nada de CGI - gozado a determinado ponto do filme - nada de efeitos especiais rebuscados. Ou não fosse o filme uma outra homenagem: aos duplos do cinema hollywoodesco.
Homenagens à parte, Tarantino diverte-se a fazer outras brincadeiras, que bem merecem textos à parte. Por exemplo, escrevi aqui há pouco tempo, sobre Land of Women, dizendo que era uma ode às mulheres. Pois bem, Deathproof não é uma ode às mulheres - Tarantino não vai em lirismos - mas é, com toda a certeza, uma rapsódia country às mulheres. E como pode ser diferente o cinema: elas têm toda a tela, com toda a sua variedade jovem, irónica, descabida, desconcertante, apenas aceitando partilhá-la com Kurt, que está ao seu serviço.
A banda sonora prodigiosa e a escolha de Austin para metade do filme (partilhada com a deliciosa Lebanon, Tenessee) mostram como os recursos de Tarantino, embora parecendo sempre regressar ao conhecido têm a magia de se renovar. A prová-lo está a capacidade de inserir um diálogo absolutamente brilhante entre o paizinho, o Xerife Earl McGraw de Kill Bill, e o filho número 1, o mesmo é dizer entre o actor que Tarantino considera o melhor do mundo dos vivos, Michael Parks, e o seu filho James Parks.
O que resta? Dito isto, restam ainda muitos Deathproofs alternativos: gajas e carros, para quem não queira pensar muito; o lap dance de Vanessa "Butterfly" Ferlito, para quem queira pensar ainda menos ou, visto de outro modo, para quem nunca mais se queira esquecer de Robert Frost; a trip down Tarantino lane; ou ainda: "vamos ver a década de dez através de uma lente dos anos 70" (e há pelo menos três lentes/técnicas de filmagem distintas durante Deathproof).
Creio que amanhã haverá mais para dizer sobre Deathproof e eu tenho muitas milhas por fazer antes de dormir.
DM
A minha vida não mudou com Pulp Fiction mas Tarantino, com esse filme, muito mais do que com Cães Danados, deixou feita uma promessa. Uma promessa de que as coisas podem mudar. Ou talvez tenha sido só a lembrança de que podemos mudar as coisas. Olhar para elas de uma forma nova. Cada jogo de cartas começa com as mesmas cartas. Mas é preciso baralhar.
Tarantino tinha feito isso com Pulp Fiction, era a sensação, ainda meia zonza, com que saí da sala 1 do Monumental, nessa tarde fria de Janeiro de 1995.
Agora são 00:27, estão 30 graus segundo o termómetro do meu carro, e eu saí há uma meia hora da sala 1 do Monumental onde, sozinho, acabo de ver Deathproof, o novo filme de Tarantino.
Com três longas metragens pelo meio (quatro se contarmos Sin City) e doze anos passados dir-se-ia que, mesmo com um bom filme, Tarantino não poderia repetir a promessa de Pulp Fiction. Poderia apenas relembrar-nos de alguma coisa mas as pessoas raramente gostam que lhes chamem à atenção.
Mas com Deathproof, e ainda bem que nada li sobre o filme antes de o ir ver, Tarantino não se limitou a fazer um bom filme: fez uma obra-prima. E não se limitou a lembrar-nos de que baralhando as mesmas cartas se começa um jogo novo, voltou a fazer-me uma promessa: o cinema ainda tem espaço, para sem grandes invenções e efeitos especiais, ganhar com uma nova perspectiva das coisas. Uma visitação tem muito de original.
A primeira mecha que nos chama a atenção - creio que voltarei a isto noutro texto - é a imagem de marca de Tarantino: a proliferação atenta de pormenores e detalhes. Para quando um Oxford Companion to Quentin Tarantino? Para Deathproof valia a pena fazer um autónomo...
Esse fogacho incendeia todo o filme e é, juntamente com a fabulosa interpretação de Kurt Russell, o esqueleto de Deathproof. Esqueleto bem posto à prova, desde logo pelo esquartejamento que sofre ao fim da primeira hora, quando um acto acaba e outro começa. Vira o disco e toca o mesmo? Sim, mas como qualquer amante de vinyl sabe, é no lado B que se encontram as preciosidades.
É verdade que com um esqueleto destes a existência torce mas não parte, o que permite a Tarantino quase tudo o que deseja. Não se trata só da homenagem a um estilo/época - o Grindhouse - que fica remetido para a forma mais do que para qualquer outra faceta do filme, trata-se de, com a desculpa da homenagem e da forma, reinventar o cinema. Nada de CGI - gozado a determinado ponto do filme - nada de efeitos especiais rebuscados. Ou não fosse o filme uma outra homenagem: aos duplos do cinema hollywoodesco.
Homenagens à parte, Tarantino diverte-se a fazer outras brincadeiras, que bem merecem textos à parte. Por exemplo, escrevi aqui há pouco tempo, sobre Land of Women, dizendo que era uma ode às mulheres. Pois bem, Deathproof não é uma ode às mulheres - Tarantino não vai em lirismos - mas é, com toda a certeza, uma rapsódia country às mulheres. E como pode ser diferente o cinema: elas têm toda a tela, com toda a sua variedade jovem, irónica, descabida, desconcertante, apenas aceitando partilhá-la com Kurt, que está ao seu serviço.
A banda sonora prodigiosa e a escolha de Austin para metade do filme (partilhada com a deliciosa Lebanon, Tenessee) mostram como os recursos de Tarantino, embora parecendo sempre regressar ao conhecido têm a magia de se renovar. A prová-lo está a capacidade de inserir um diálogo absolutamente brilhante entre o paizinho, o Xerife Earl McGraw de Kill Bill, e o filho número 1, o mesmo é dizer entre o actor que Tarantino considera o melhor do mundo dos vivos, Michael Parks, e o seu filho James Parks.
O que resta? Dito isto, restam ainda muitos Deathproofs alternativos: gajas e carros, para quem não queira pensar muito; o lap dance de Vanessa "Butterfly" Ferlito, para quem queira pensar ainda menos ou, visto de outro modo, para quem nunca mais se queira esquecer de Robert Frost; a trip down Tarantino lane; ou ainda: "vamos ver a década de dez através de uma lente dos anos 70" (e há pelo menos três lentes/técnicas de filmagem distintas durante Deathproof).
Creio que amanhã haverá mais para dizer sobre Deathproof e eu tenho muitas milhas por fazer antes de dormir.
DM
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