A mãe e a puta - paradoxos e inversões identitária-alegóricas*
Autonomizo este texto pois nele cuidarei do ponto que transformou o filme de Eustache num dos filmes da minha vida. Diz-se que a curiosidade matou o gato mas deveria acrescentar-se que a curiosidade que não nos mata, atormenta-nos. E o homem fará coisas incríveis para se livrar dos tormentos...
Lembro-me que a minha reacção ao monólogo de Verónika foi há 12 anos a mesma que ontem. Para mim é o ponto de excepção do filme. Se quiserem, para utilizar linguagem dionisíaca, pedida de empréstimo à História das Religiões, o monólogo de Verónika é, em La Maman et La Putain, o toque do Outro, o toque subversivo.
O que tem de interessante para mim este toque subversivo é que, se Diónisos era na pólis o 13º deus, ao qual Héstia (veja-se a simbologia) cedeu o seu lugar no panteão, o deus do delírio da loucura, do irracional, no meio dos deuses da sociedade institucional, o Caos no meio da Ordem, o monólogo de Verónika - e toda ela daí para a frente - é o toque subversivo do institucional em todo o caos de Eustache.
Aproveito aqui o exemplo do Hugo Alves no seu texto sobre La Maman..., em Amarcord, por me parecer interessante. E por discordar dele, sendo por isso mais criativo.
O Hugo Alves nota, como eu, a singularidade do solilóquio de Verónika no meio da toada contínua do filme. Para utilizar a sua palavra - teatralidade - ela opõe-se ao momento genuíno que - serei agora também provocador - parece ser o monólogo de Verónika. Mas mantém nos seus textos a natural assumpção de que Verónika é a puta. Isso é interessante. A teatralidade, para persistir na alegoria dionisíaca, é o território de Diónisos. E o monólogo de Verónika, embora torrencial, emotivo e emocionado, é puro e cândido. É contra essa teatralidade, por uma instituição. De algo.
O que penso hoje (como pensei então), depois de 12 anos e dois visionamentos da obra de Eustache é que Verónika é até esse momento libertador la putain mas que aí o deixa de ser. E deixa de o ser aí - e apenas aí - por intermédio da palavra, que a revela como é: la maman. É ela a figura maternal, a que quer casar-se, a que porfia no seu amor. A que, até então tinha vestivo - e assumido - a figura de puta. Neste momento não consigo deixar de pensar na figura de Maria Madalena, que até pelas roupas que enverga, Verónika faz lembrar. Mas também a cena final me confirma esta ideia. É afinal com Verónika que Eustache parece deixar Alexandre, para sempre, quando nos impõe o seu FIN, violento, sobre uma cena de intimidade tocante, como poucas na história do cinema: Verónika pede que Alexandre não olhe para ela enquanto votima, dizendo que não quer que o homem que com ela vai casar a veja assim, e Alexandre parece obedecer apenas para, na iminência do fim (que, é afinal, apenas prenúncio do começo) a olhar, num misto de abandono resignado e cansada ternura. E, olhando assim para trás, é Marie que sempre sustentou e foi para a cama com Alexandre quem fica parecendo (e sendo) a puta. Aquela que fica sozinha, que se despoja completamente do seu aspecto de mãe, se alguma vez o teve.
Tudo isto porque me apetece ser cínico e dizer que o homem, Alexandre, se diverte com a puta mas fica sempre com a mãe. Se decide ficar com alguém.
Enfim, é apenas uma ideia. Aos meus 41 voltamos a conversar.
DM
* - este título vai dedicado aos meus amigos sociólogos, de quem sempre muito aprecio o jargão.
Passa amanhã, novamente, às 22 horas, na Cinemateca.
Lembro-me que a minha reacção ao monólogo de Verónika foi há 12 anos a mesma que ontem. Para mim é o ponto de excepção do filme. Se quiserem, para utilizar linguagem dionisíaca, pedida de empréstimo à História das Religiões, o monólogo de Verónika é, em La Maman et La Putain, o toque do Outro, o toque subversivo.
O que tem de interessante para mim este toque subversivo é que, se Diónisos era na pólis o 13º deus, ao qual Héstia (veja-se a simbologia) cedeu o seu lugar no panteão, o deus do delírio da loucura, do irracional, no meio dos deuses da sociedade institucional, o Caos no meio da Ordem, o monólogo de Verónika - e toda ela daí para a frente - é o toque subversivo do institucional em todo o caos de Eustache.
Aproveito aqui o exemplo do Hugo Alves no seu texto sobre La Maman..., em Amarcord, por me parecer interessante. E por discordar dele, sendo por isso mais criativo.
O Hugo Alves nota, como eu, a singularidade do solilóquio de Verónika no meio da toada contínua do filme. Para utilizar a sua palavra - teatralidade - ela opõe-se ao momento genuíno que - serei agora também provocador - parece ser o monólogo de Verónika. Mas mantém nos seus textos a natural assumpção de que Verónika é a puta. Isso é interessante. A teatralidade, para persistir na alegoria dionisíaca, é o território de Diónisos. E o monólogo de Verónika, embora torrencial, emotivo e emocionado, é puro e cândido. É contra essa teatralidade, por uma instituição. De algo.
O que penso hoje (como pensei então), depois de 12 anos e dois visionamentos da obra de Eustache é que Verónika é até esse momento libertador la putain mas que aí o deixa de ser. E deixa de o ser aí - e apenas aí - por intermédio da palavra, que a revela como é: la maman. É ela a figura maternal, a que quer casar-se, a que porfia no seu amor. A que, até então tinha vestivo - e assumido - a figura de puta. Neste momento não consigo deixar de pensar na figura de Maria Madalena, que até pelas roupas que enverga, Verónika faz lembrar. Mas também a cena final me confirma esta ideia. É afinal com Verónika que Eustache parece deixar Alexandre, para sempre, quando nos impõe o seu FIN, violento, sobre uma cena de intimidade tocante, como poucas na história do cinema: Verónika pede que Alexandre não olhe para ela enquanto votima, dizendo que não quer que o homem que com ela vai casar a veja assim, e Alexandre parece obedecer apenas para, na iminência do fim (que, é afinal, apenas prenúncio do começo) a olhar, num misto de abandono resignado e cansada ternura. E, olhando assim para trás, é Marie que sempre sustentou e foi para a cama com Alexandre quem fica parecendo (e sendo) a puta. Aquela que fica sozinha, que se despoja completamente do seu aspecto de mãe, se alguma vez o teve.
Tudo isto porque me apetece ser cínico e dizer que o homem, Alexandre, se diverte com a puta mas fica sempre com a mãe. Se decide ficar com alguém.
Enfim, é apenas uma ideia. Aos meus 41 voltamos a conversar.
DM
* - este título vai dedicado aos meus amigos sociólogos, de quem sempre muito aprecio o jargão.
Passa amanhã, novamente, às 22 horas, na Cinemateca.
Comentários
Eu, provavelmente, fiquei-me pela leitura mais convervadora e directa do filme. Provavelmente, preciso de crescer mais um bocado para captar melhor a, chamemos-lhe assim, "essência" deste filme monumental.
Cumprimentos
PS - não passa hoje, mas sim amanhã às 22 :-)
Quando ao resto, não podia concordar mais com o que dizes sobre a prevalência do princípio feminino a que Eustache dá destaque (que efeito sonoro interessante). Este filme, como qualquer coisas "das nossas vidas" cresce connosco: cada vez que leio os Maias tenho uma personagem preferida diferente. E já lá vão umas 4 leituras... um abraço DM