Babel

De vez em quando há alguém que, ao invés de criar o zeitgeist o captura. A dupla Arriaga/Iñárritu continua a fazê-lo. E bem.

Em Babel, a terceira colaboração da dupla e o fim da trilogia sobre a (in)comunicabilidade, depois de Amores Perros e 21 Grams, esta capacidade de escrever e filmar o espírito do tempo atinge o seu auge. E, desfaz-se. Noto, sobre todas, três cenas: o belíssimo casamento mexicano, a deambulação pela discoteca nipónica e a caminhada pelo deserto californiano. Nestas três cenas Iñárritu passa para o outro lado da sua própria arte: normalmente muito bom a perceber que este é o tempo dos nexos frágeis embora mais numerosos e variados, o que cria um paradoxo de (in)comunicação, nestas três cenas o que o realizador mexicano faz é - subitamente - focar, com enorme violência sensorial, um dos pontos dessa rede de nexos. E, assim, com o súbito apagão do mundo a que estamos habituados, Iñárritu devolve-nos uma primordialidade que está muito para além (e até contra) o espírito do tempo que tanto o preocupa e persegue. A cena da discoteca é para mim, das três que referi, a melhor para ilustrar este ponto: depois de vários minutos a demonstrar um encontro de adolescentes japoneses, bebendo álcool e consumindo ecstasy num parque público, anoitecendo depois por bares dentro, é chegado um momento em que todos se dirigem para a discoteca. E, num repente, Iñárritu, que até essa altura se tinha desdobrado em campos e contra-campos vertiginosos, centra-se na personagem principal dessa sub-história, uma adolescente surda-muda, e dá-nos o mundo através dela: uma discoteca silenciosa, cruelmente vertiginosa, em que os corpos se movem sem justificação, animados pelo silêncio, total, violento. Não é apenas uma outra visão do mundo. É o choque de nos confrontarmos com a existência daquela visão do mundo. E de sermos obrigados a acompanhá-la.

Pode dizer-se que em Babel, mais do que estudar os nexos múltiplos mas frágeis que já existiam em Amores Perros e 21 Gramas, Arriaga e Inárritu preocuparam-se em mostrar como é a vida dos nexos perdidos. Quando de uma rede vária e protectora se desprende um ponto, que se torna imediatamente pequeno, frágil, irrisório.

Aí apenas resta a comunicação para nos reintegrar nessa rede mas, dando sentido ao título do filme, este regresso à sociedade dos homens não se mostra fácil: uma vez quebrados certos nexos, por intenção ou acaso, a comunicação como técnica para nos devolver o quotidiano mostra-se muito mais difícil do que pode parecer. Não se trata apenas de combinar, traduzir diferentes linguagens (embora o problema comece aí) mas antes de utilizar a linguagem de uma forma pura e simples, que permita ligar os seres. Como uma espécie de religião. Porém, este religar depurado da linguagem, mesmo dentro de uma mesma língua, está completamente contra a corrente do que é o zeitgeist que tanto atormenta esta dupla mexicana. E, neste filme, esse tormento, essa paixão, seguindo-se o conselho de Goethe, torna-se obra de arte.
DM

Comentários

Puto Psycho disse…
Estás "in the zone"...

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