A mãe e a puta - Aos 41 estou lá outra vez

Uma grande vantagem de ver La Maman et la Putain de 12 em 12 anos é que me dá tempo suficiente para pensar nas várias questões levantadas pelo filme. Mas, sobretudo, dá tempo para recuperar a fatiga emocional a que o filme de Eustache me sujeita. Não se trata só de serem 3 horas e 20 minutos de filme. São 3 horas e 20 minutos exigentes. Muito exigentes. Como notava o Hugo Alves, em comentário a post anterior (e em texto que agora noto), La Maman... é um filme falado. Tanto mais falado quanto a palavra se estende, como um vício, uma naturalidade, sobre as cenas onde ela (supostamente) menos deveria surgir. O exemplo melhor é, evidentemente, o sexo. La maman é também um filme de sexo falado (e nem por isso menos gráfico) como nos relembra (ou confirma) o fascinante monólogo de Verónika, ao cair do pano.

Para um liberal de esquerda creio que há poucas coisas mais importantes que elaborar em vida uma Teoria Geral das Obrigatoriedades (não confundir com Obrigações). Um liberal de esquerda que o faça será feliz. O ser de esquerda já lhe deu a liberdade ou a consciência da liberdade, o ser liberal deverá criar-lhe a urgência de delimitá-la. Como? Determinando o que deve ser obrigatório. Para poder ir à sua vida, como diria o outro, com tranquilidade. Como este não é um blog de ciência ou filosofia política passo para o essencial: La Maman et La Putain deveria ser de visionamente obrigatório no 10 ano de escolaridade. Uma coisa soviética, mesmo. Ou Sex-Ed, em versão High School norte-americano. Depois disso acabavam-se as desculpas. Mais. Devia ser de visionamento obrigatório com oferta do dvd (que, já agora, não existe em circuito comercial). Depois disso acabavam-se todas as desculpas. Não que não se pudessem fazer as coisas - que se façam! e far-se-ão, por certo - mas o cinema ali estaria, como lastro, a lembrar que somos, quase sempre, clichés. O truque, se truques há, é encontrar um sortilégio de como deixar de os ser.

O filme de Eustache é Eustache. É-o por várias razões: porque se despejou nele, por despejou nele a sua história pessoal, porque fez uma direcção de actores hiper-rígida, onde o texto - o seu texto - é imperativo; onde o mise-en-scene é de um rigor absoluto. O próprio brinca com isso colocando-se no filme como o marido da Gilberte de Alexandre, que este cruza no supermercado depois de beijar Verónika. E não é uma personagem qualquer, figurante menor, é o marido que Verónika cita no seu longo solilóquio como o representante do instituído, do institucional, de tudo contra o que está Alexandre, verdadeiro alter-ego de Eustache.

Como contornar o Maio de '68. Impossível. Este é um filme feito nos seus escombros. Mas, por isso mesmo, deixemo-lo como tal ou então lembremo-lo apenas por umas das minhas passagens preferidas do filme de Eustache que aqui reproduzo de memória:

a dado momento Alexandre conta a alguém - creio que a Verónika e, talvez também a Marie - que uma vez, no Maio de '68, entrou num café e todos os que aí estavam choravam baixinho; momento lindo. Di-lo com um ar triste, compungido, meio abandonado, etéreo, que nos transporta para as grandes emoções ideológicas desse mês desse ano e nos deixa a sonhar com esses tempos. Apenas para depois, no mesmo tom, com a mesma displicência, acrescentar: tinham lançado para dentro do café uma bomba de gás lacrimógeneo.

Para mim esta pequena anedota resume tudo o que me interessa do Maio de '68 e desse mês desse ano neste filme de Eustache: os escombros.

Como de escombros é todo o filme. Escombros relacionais, emocionais, claro, mas também escombros intelectuais, peças que se desmoronam ou não fosse a Recherche... a obra tutelar deste filme, livro que Alexandre para todo o lado carrega. Isso não deixa de ser também interessante pois a Recherche... é talvez o livro mais anti-café do mundo. Ou, visto de outra perspectiva, o livro de café perfeito para quem só vive no café. Lendo. Mas Alexandre, embora faça do café a sua placa giratória, como toda a sua geração, não está no café lendo (e muito menos lendo o necessário para completar a Recherche..., obra e metáfora) mas está no café vivendo. Como toda a sua geração.

Neste filme, para onde Eustache se despejou, repito, tudo se procura resolver e nada se resolve. Ou nada se resolve como parece. Se os filmes, os realizadores, as músicas, os cantores, os locais, os destinos, parecem ser âncoras vagas para a perdição saudada que encarna os personagens - Alexandre e o seu curioso amigo - tudo isso não deixa de ser paisagem para a digressão masculina de Alexandre por entre arquétipos e estereótipos femininos. Quando chegamos ao fim da viagem - esmurrados pelas falavra FIN, que serve simultaneamente de despertadora e de salvadora - ficamos sós na hermenêutica do título. Quem era afinal a Mamã, que era afinal a Puta? O texto vai longo e a resposta propicia-se extensa. Para outro texto.
DM

Comentários

Hugo disse…
Apesar de datado - a construção sobre os escombros do Maio de 1968 é inegável - o filme conserva muita actualidade. Porque, no fundo, aborda o mais trivial e banal dos temas: as relações entre os sexos (obviamente, com várias ramificações).

No meu caso, a cada visionamento (já lá vão 3) sinto-me sempre sovado. Porque esta tríade de Eustache (Alexandre à cabeça) trata de depurar o mais profundo do ser, escalpelizando-o, para cair num nihilismo (quase?)total. E, a bom ver, não será muito diferente, por vezes, hoje em dia.

Mais um belo texto :-)

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