Presos do lado de fora


Para um adulto num fim de dia de trabalho o filme Ninguém sabe deve ser uma estopada do caraças. Eu sei do que estou a falar. Eu saí do trabalho directamente para o filme e fui vítima dos murmúrios de Hipno ao fim de 15 minutos. E ainda bem: essa foi a minha redenção. A partir daí desvelou-se perante mim um filme magnífico.

Claro que para a maioria dos adultos, em fim de dia de trabalho, o filme prosseguiu sendo uma boa estopada. Conseguia ouvi-los remexendo-se nas cadeiras, imaginava-os olhando os relógios, de 20 em 20 minutos, desejando o fim do suplício. Teriam razão? Têm, com certeza.

Hirokazu Koreeda escolhe um ritmo lento, lentíssimo por vezes, para o seu filme. As excepções são ponderadas a rigor, aliás, conjuntamente com um uso sábio (e deslumbrante) da música. Ora este ritmo lento dificilmente se compadece com o ritmo frenético que a cidade nos instila, que carregamos com o nosso stress, ao fim de um dia, mesmo se, como eu, cansados. E, em face disto, ou a desistência ou a redenção. Felizmente para mim o acaso (o momentâneo Hipno, perdão) trouxe-me a redenção. E palavras: abandono, clausura, alheamento, estranhamento.

Este ritmo lento de que falei é o ritmo ideal para entrar num mundo de crianças. Mas de que crianças?

Crianças abandonadas. Esta primeira faceta, que já conhemos quando entramos na sala é a que apenas me importa no fim. Mas é também aquela que acompanha toda a experiência de Ninguém sabe.

Crianças enclausuradas. No Domingo vi o filme chinês O Mundo, também ele uma reflexão sobre a pior das clausuras, a social. Aquela em que podemos mas não podemos. O corpo pode e a cabeça também mas o resto não deixa, aprisiona. Não pude hoje deixar de pensar nas semelhanças entre um e outro filme, apesar de todas as diferenças. Há em Ninguém sabe, uma terrível clausura. Não só física, dos três irmãos mais novos que (quase) nunca podem sair do apartamento mas de todos eles face à impotência que acarreta a sua idade e condição. E que condição é essa? Uma de abandono, já se disse, mas igualmente de estranhamento e alheamento. Próprios da idade e aumentados pelo desprezo a que são votados.

Crianças estranhadas. Pelos outros, por si mesmas. Todo o filme é um autêntico poema ao estranhamento entre as crianças e o mundo. O modo incompleto como a infância deles se confronta com as coisas, sem que tenham ajuda para as aprender, perceber. E o tenham de fazer, por si, em erros e tentativas. O título que escolhi para este texto vem aliás de uma das mais belas cenas do filme em que Akira segura pelo lado fora as grades da escola, como se estivesse preso numa cela, mas pelo lado de fora. Akira não entra na escola, que nunca conheceu, excepto num fatídico momento que servirá também o desenlace do filme. Desenlace falso, acrescente-se.

Crianças alheadas. No que regressamos ao abandono, que tudo une e possui neste filme. As crianças de Ninguém sabe são crianças alheadas. Os dois miúdos escolares, fugazes e falsos amigos de Akira, menos, mas ainda assim, presentes na tendência para o roubo. Mas talvez a proximidade mais evidente seja a das quatro crianças abandonadas com a outra grande abandonada do filme, Saki, a colegial etérea e silente, que paira pela vida dos quatro irmãos.

Este é um filme de marginalidades e de crianças, em que as crianças ocupam todo o espaço e o seu mundo, ainda incompleto, por completar-se, demonstra, até à tragédia, como é diverso e, só por mero acaso, por aparência, se confunde com o dos adultos. Os adultos, estão, aliás, tratados como tipos alegóricos. Desde a mãe, passando pelo dois possíveis pais de Yuki, até uns fugazes empregados. São as crianças que importam, não importando. Elas estão abandonadas, confinadas, estranhas, alheadas mas perduram pelo mundo dos adultos como se nada fosse, presos do lado de fora, marginalizados geografica e socialmente, como se habitassem um espaço paralelo mas invisível.

E, mesmo quando se torna evidente, pela morte, que as construções, de tudo, do Bem e do Mal, incompletas, não coincidem com as dos adultos, a realidade se encarrega de demonstrar que isso importa pouco, pois há no mundo das crianças, produto daquilo que os adultos permitem que seja, uma lógica própria, uma coerência íntima. Como em qualquer mundo. Que merece e precisa (desesperadamente, dir-se-ia) de ser (re)conhecido.
DM

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