IndieLisboa 2006 - cinema para reaprender a dor



”It´s the sense of touch. Nobody touches you. You miss that touch so much, we have to crash into each other just to feel something...” São as palavras que anunciam, aos primeiros instantes, a natureza de Crash, de Paul Haggis, o filme-surpresa que a Academia acabaria por premiar. Mas poderiam, facilmente, transformar-se em senha para a III edição do IndieLisboa, aos últimos dez dias de Abril, nos cinemas da Avenida de Roma.
É claro que o escriba não assistiu aos 200 filmes previstos, distribuídos pelas secções repetentes (Competição, Observatório, Herói Independente e IndieJunior) ou estreantes (Laboratório, IndieMusic e 90 anos de Curtas-Metragens Suecas) e sessões especiais. Não. O escriba não assistiu aos trabalhos de Emir Kusturika, Abel Ferrara, Nick Cave, Bjork, Larry Clark ou Matthew Barney que pontificarão o festival. O escriba, senhoras e senhores, tem uma vida.
No entanto, ele escolheu meticulosamente alguns dos títulos programados e jura a pés juntos que a citação inicial faz todo o sentido: a julgar pela amostra, este Indie promete a colisão para ter a certeza que ainda sentimos.
Concentremo-nos em dois títulos: Me And You And Everyone We Know, de Miranda July, e Winter Soldier, da Winterfilm Collective.
Para quem percebeu que a temporada comercial trouxe uma série de boas obras, com magníficos desempenhos dos protagonistas, mas nenhum grande filme, uma mensagem de esperança em duas palavras: Miranda July. Ao melhor sabor dessa “new weird America”, de Todd Solondz a Paul Thomas Anderson, chega Me And You And Everyone We Know, escrito, dirigido e interpretado pela cineasta de apenas 32 anos. Trata-se de um murro no estômago a recordar as dores sentidas aquando de Happiness, mas com o toque feminino a trocar o cinismo por uma estranha relação de paixão entre a crueldade e a doçura.
O filme de July é uma promessa de redenção para o mundo pequeno, carveriano, sem heróis nem julgamentos morais. Com algumas das melhores cenas dos últimos anos (atentem no peixe no trânsito, no “fuck” que, inscrito no pára-brisas, insulta a paisagem que passa ou no encontro entre a inesperada dupla de chat-flirters, por exemplo), assenta numa estrutura mosaica de personagens demasiado humanas para que não devorem o espectador.
Winter Soldier é a viagem de regresso, o banho de realidade sem salvação prevista. O documentário de 95 minutos compactado por um colectivo de 12 directores foi recuperado em 2005, depois do seu lançamento original em 1972 ter sido amordaçado como castigo pela polémica causada.
Entre 31 de Janeiro e 2 de Fevereiro de 1971, no Michigan, 109 veteranos do Vietname e 16 civis reuniam-se para relatar os crimes a que haviam assistido ou mesmo cometido durante o seu serviço às ordens dos oficiais do exército norte-americano. De lágrimas nos olhos ou a partir da mais pura e simples inexpressividade, este manifesto contra a guerra que contou, entre outros, com aquele que viria a ser o candidato derrotado às últimas eleições presidenciais, John Kerry, percorre a insanidade da guerra, o esventramento de mulheres, o assassinato de crianças, o puro e simples homicídio, cometidos em nome de uma guerra que a actualidade insiste em fazer recordar.
Cinema contra a frieza, pois. Ou: a expectativa de um Indie para reaprender a sentir.
AB

Texto publicado na Atlântico nº13.

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