A incomunicável experiência


Se há algo que a solidão nos ensina é a lidar melhor com o incomunicável. Afinal, a solidão ensina-nos, entre muitas outras coisas, que há um recanto inacessível em todos (e em tudo). Esta lição permite aceitar mais facilmente o acidente de um dia nos confrontarmos com a impossibilidade da comunicação. Não é à toa, aliás, que há em muitas religiões um discurso comum de situações de solidão extrema na extrema busca por Deus, essa solidão que nos liga a todos.

O que a solidão permite é que esse acidente, se um dia cair sobre nós, não seja um trauma para toda a vida - algo que nos corta dos outros - mas antes um episódio que podemos aproveitar para ganhar um pouco de perspectiva, de humildade, o que seja que nos falte e que só podemos encontrar sozinhos. Num mundo cheio de...bem cheio de tudo, este pode bem ser um método para tornar algo aparentemente terrível em algo redentor. Um modo de não sofrer com a incomunicabilidade da experiência mas antes tornar essa incomunicabilidade uma experiência. E, sim, partilhável. Passe o paradoxo.

Ocorreu-me tudo isto durante o visionamento de Brothers, de Jim Sheridan, com Jake Gyllenhaal, Tobey Maguire, Natalie Portman e Sam Shepard (para o que aqui interessa). Ocorreu-me que Sheridan ao tomar a guerra como mote, procurou um lugar onde encontrar (e justificar) uma incomunicável experiência, de um modo que o espectador consiga simultaneamente suspender a sua incredulidade e até mesmo colaborar, esforçando-se para perceber. Mas no fim não percebe. Não se pode perceber. E, apesar de 30 segundos a mais (o filme devia ter acabado quando Maguire diz alto ter morto o companheiro de armas, poupando-nos a pedagogia empapada), a verdade é que Sheridan nunca cede à tentação de nos tentar convencer que haverá redenção, que haverá empatia, comunicação, entendimento. Quanto muito fica a promessa e é bem que fique pois todas as incomunicáveis experiências, lá no fundo esperam uma alquimia.

No meio de tudo isto, o filme constrói-se como um suporte arbóreo, como um reforço orgânico desta ideia central, de que a incomunicabilidade de uma experiência é tão mais dolorosa e dilacerante quanto aquilo que nos obriga a excluir, nos força para fora do alcance da partilha.

Sucede isso com cada personagem que Sheridan coloca a orbitar a vida de Maguire.

A mulher, uma Natalie Portman que no princípio do filme me parecia deslocada por uma beleza fora de tom, que Sheridan, contudo, mostra ser um artifício propositado, para explicar como a beleza da mulher tão contribui para aumentar o sofrimento da distância, da ausência e para justificar todos os medos, todas as traições.

O irmão, Gyllenhaal, verdadeiro catalisador, cuja voz permite uma segunda redenção e uma segunda hipótese a Maguire, num jogo de salvamentos recíprocos.

O pai, um assombroso Shepard, contido, seguro tanto quanto visceral, a desenhar as fronteiras de uma fraternidade complexa mas livre e autónoma.

Filme de guerra por excelência, porque seu poderia ser o mote do meu filme de guerra, Cada homem combate a sua própria guerra, Sheridan aplica aqui os seus dotes de realizador ao contrário de Malick. Onde este é universal, grande como a natureza, Sheridan é o estudo de caso, o microcosmos. Faz um filme onde nos podemos justamente perguntar se é a guerra que permite a questão existencial ou se é a questão existencial que melhor ilustra e floresce em conto de guerra. Creio, contudo que isso é o menos importante. Talvez seja mais decisivo notar que se a guerra permite cenários de incomunicáveis experiências talvez seja porque é aí que é mais fácil encontrar experiências-limite nas duas principais perspectivas da existência, o corpo e o espírito, de um modo compreensivo, total, integrado.

Por isso mesmo, filme simples que seja, mais uma história de guerra, mais uma história americana, mais um filme do Afeganistão, Brothers é desde o início arena para tudo: para revisitar a fraternidade (dimensão que mais me escapa, na minha condição de filho único), para revisitar a conjugalidade, a paternidade (enquanto descendência e ascendência) e para revisitar esse mais temido e esquecido dos laços, aquele que se mantém para lá de todos os outros, o eu-mesmo. Exploramos, assim, os modos como podemos sobreviver a uma incomunicável experiência. Seja porque a voz de um irmão nos vem buscar à boca do suicídio ou porque a confissão de culpa à mulher amada nos põe no possível caminho da redenção.

Se aprendermos o solidão a que a incomunicável experiência obriga aprendemos a língua e os modos de gravitar em volta do que resta dos outros e de nós próprios.
DM

Comentários

Anónimo disse…
Salve, grande Domingos! Parabéns e obrigado pelo regresso.
Domingos Miguel disse…
Não sei se é bem um regresso, Alex. Vamos lá ver...mas obrigado ;)

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