do fundo do coração
O ETERNO SOLTEIRÃO
De: Brian Koppelman & David Levien
Com: Michael Douglas, Susan Sarandon, Danny DeVito
“O Eterno Solteirão “ é daqueles títulos que traz agarrada uma comédia ligeira, boa para tardes de sábado e de sofá. Imaginamos logo o protagonista na meia-idade, folgazão, especialista profundo em relações superficiais, mas que, no fundo, é um coração de manteiga à espera da redenção (que obterá, obviamente, no final do filme). O problema é que o título original nada tem a ver com esse tom jovial – e voltamos ao assunto aqui tratado algumas semanas atrás: a arte tipicamente portuguesa do fabrico muito próprio de traduções. Brian Koppelman e David Levien chamaram ao filme “Solitary Man”, expressão onde, em princípio, até Zezé Camarinha reconheceria uma certa melancolia. E, para tirar todas as dúvidas, construíram uma banda sonora em torno do tema homónimo entoado por Johnny Cash, esse pândego incurável.
O solitário chama-se Ben Kalmen e levou uma vida exemplar até receber um telefonema do médico: há qualquer coisa no electrocardiograma, disse. Temos de ver melhor. Mas Ben não quis ver. Sentiu, pela primeira vez, a morte a respirar-lhe no pescoço. Até ali, tinha um casamento sólido, uma filha, um neto, uma reputação de honestidade; era um homem, pai e empresário modelo. Depois do telefonema, não quis saber o que poderia estar no electrocardiograma. Como ele próprio esclarece perto do final, qual é a melhor notícia que um médico nos pode dar, naquela idade? “Felizmente, é curável.” Ou “É um tumor, mas, graças a Deus, é benigno.” Ou ainda “Que sorte que demos por ele a tempo.”
Kalmen preferiu outra solução. Viver a vida até ao fim. Desligou o telefone, bebeu uns copos e foi para a cama com a primeira rapariga com idade para ser filha dele que cedeu aos avanços. Depois, fez o mesmo com outra e outra e outra. E estendeu a filosofia aos negócios: uma pequena jogada por debaixo da mesa. Ninguém disse nada e ele continuou. Com outra e outra e outra.
Um dia, já não tinha nada. Nem família, nem dinheiro, nem reputação. Mas não se arrepende. Foi capa da Forbes e vedeta de televisão. Um benemérito que ergueu uma biblioteca universitária baptizada em seu nome. Se agora serve à mesa num café, não se queixa da sorte ou da justiça ou do bem e do mal. Não julga ninguém. A vida é como é. Não acredita no amor nem em médicos nem em nada. Os amigos, diz, são bons para aquela grande zona intermédia da normalidade. O resto não existe. Atingir o topo ou bater no fundo são coisas que fazemos completamente sós.
“Solitary Man” – ou, na versão regabofe, “O Eterno Solteirão” – tem o aspecto modesto e sem rasgo de coisa boa para ver em dvd. Mas, de repente, do dramazinho low cost, vão saindo personagens, frases, ideias de primeiro escalão. E, aos poucos, revela-se um drama maduro, feito por gente com cicatrizes (belíssimas as aparições de Susan Sarandon, Danny DeVito ou Jesse Eisenberg, cada um a trazer ao filme uma camada mais de verdade, em papéis pequenos, mas cheios de gravidade).
No entanto, a presença de Michael Douglas arrebata tudo. Esse Michael Douglas que é Ben Kalmen, que também subiu e desceu à sua maneira, que sofreu daquela estranha doença que é a adição ao sexo e foi curar-se, sabe-se lá como, a uma clínica. Esse a quem foi diagnosticado, recentemente, um cancro na garganta.
A grande razão para ver e recordar “Solitary Man” é esse sentimento da presença de Michael Douglas. Essa força de nos fazer acreditar que é ele mesmo quem ali está.
É a ilusão que pagamos para ver. Para a semana, no novo “Wall Street”, pagaremos para que Douglas nos convença precisamente do contrário. De que nunca conheceu Ben Kalmen. Sempre foi, toda a vida, Gordon Gekko.
AB
i, 2010.09.16
Comentários