os outros que façam as autobiografias
O ESCRITOR FANTASMA
De: Roman Polanski
Vozes: Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Olivia Williams
A hermenêutica chama-lhe psicologismo (não desista já de ler – isto torna-se mais interessante). Já todos a praticámos: tomar a obra pelo autor. Avaliar os livros de Saramago pelas posições que assumiu em vida. Ler Heidegger tendo presente que morreu sem rasgar o cartão da Nacional Socialista. Ou, como também vem a propósito esta semana, julgar o trabalho de Tom Cruise pela igreja a que vai ou pelos malabarismos de que é capaz em cima dum sofá. É um erro e uma injustiça. Medir a obra pela vida do autor faria um génio de qualquer falhado pelo simples facto de ser uma jóia de pessoa.
Roman Polanski, que tem uma história pessoal mais dramática que muita ficção bem urdida, é, neste contexto, um alvo fácil. Cresceu num campo de concentração, perdeu lá a mãe, assassinaram-lhe a mulher grávida de oito meses, foi condenado pela violação duma adolescente, viveu 30 anos em fuga e acabou – por agora – preso em Zurique, quando ia receber um prémio de carreira. É difícil ver um filme dele sem pensar em tudo isto? É, mas tem de ser. Polanski já estava preso quando finalizou “O Escritor Fantasma”. Isso nota-se de alguma forma? Nem por sombras. É um esplêndido filme de intriga, um thriller em baixa rotação como “Chinatown”, um luxo requintado servido por um dos grandes cineastas vivos. Que importa se, quando o fez, o autor estava preso ou estendido ao sol nas Bahamas?
Ewan McGregor é um homem sem nome contratado para terminar as memórias de Adam Lang (Pierce Brosnan), o antigo primeiro-ministro britânico. Chamam-lhe simplesmente “o fantasma”. É o ghost-writer da autobiografia dum político. A mão pensante que escreve, na sombra, pela cabeça de outro. Lang vive em retiro com a mulher (Olivia Williams) e um curto staff numa casa na praia, numa ilha americana. A casa é a imagem acabada da vida pública dum político: perfeita e sem alma; a ilha e a visão da praia que entra pela vidraça acentuam o isolamento, a certeza íntima de que, dali, não há saída.
Mas, de início, não pensamos em nada disto. A nossa atenção está entretida com a personagem de McGregor. Um literato numa casa de pragmáticos, um homem que se anula para ser outro, um escritor mesmo quando fala, sempre em busca da palavra justa. Contudo, a pouco e pouco, a história adensa-se e, de sátira à figura do ghost-writer, inteligente, mas inofensiva, avançamos para o mistério, o suspense, os territórios do thriller.
Rebenta o escândalo em torno de Lang: a colaboração com a CIA, a possível implicação em actos de tortura e uma acusação por crimes contra a humanidade. E há mais: é preciso descobrir como morreu o antecessor do fantasma, investigar a relação entre Lang e a mulher, perceber a quem se deve lealdade. Começámos na delicadeza da literatura; estamos agora no coração da ambiguidade política, cheia de intrigas e jogos duplos, onde confiar ou desconfiar podem conduzir ao mesmo engano. Seguimos com o fantasma à procura de respostas. Juntos, somos um cardume fora de água, num jogo de espelhos, em direcção a uma conclusão, apesar de tudo, generosamente esclarecedora.
A cena final (que não podemos revelar muito sob pena de o leitor nos apedrejar um dia, à saída dum qualquer cinema) é a assinatura dum mestre. Com o plano a deixar-se ficar estático olhando o fundo da rua, enquanto deixa a acção acontecer para além do ecrã. Breve e brutal, trágica e cómica. O sorriso inexplicável do pessimismo.
Se quisermos pensar em Polanski, está ali um desabafo. Se quisermos pensar em política, está ali Tony Blair. Se quisermos pensar em cinema, está ali um belo, belo filme.
AB
i, 2010.07.15
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