o cinema acaba aqui
SHIRIN
De: Abbas Kiarostami
Com: 114 actrizes iranianas & Juliette Binoche
115 mulheres numa plateia. Há mais umas figuras a aparecer parcialmente em segundo plano, entre as quais alguns homens, mas sem qualquer importância. 92 minutos de filme. Tudo o que vemos é o rosto delas, sem que nos seja jamais dado um breve vislumbre do que vêem – só o áudio. Uma construção narrativa inteiramente feita de vozes de actores e ambiências sonoras, representando “Khosrow E Shirin”, poema persa do século XII e equivalente mitológico do Médio Oriente para “Romeu E Julieta”. Desse palco ou dessa tela, desse quer que seja que fica fora de campo, tudo o que chega à imagem são ténues variações de luz, redesenhando os contornos dos rostos da audiência e tornando ainda mais fantasmático esse filme que não vemos.
Porque, quanto ao que vemos, é o não-filme, o para além do filme, o filme depois de consumido, a cada instante, por cada uma das 115 mulheres. É o filme filtrado, percepcionado, sentido – a única forma de um filme existir para cada um de nós. Esse filme que nos fica na cabeça ou no coração, que depois partilhamos em conversa com amigos e que já não é o mesmo que dorme guardado em bobines e cópias dvd.
“Shirin” é o filme que resulta destes dois filmes: um feito de sons e resquícios de luz e outro da plateia que o vê. Mas é mais que isso. Porque, na sua experiência radical de cinema, nos devolve à emoção primordial, ao fascínio infantil da primeira vez que nos sentámos numa sala, esmagados pelo grande ecrã. Porque todos os planos são grandes planos de rostos, rostos enormes, do tamanho da sala, reduzindo-nos à altura de um lábio, à largura de meio nariz.
Segundo Godard, o cinema começa em Griffith e acaba em Kiarostami. E isso, além de ser uma belíssima frase para dizer num jantar, é capaz de ser bem verdade. Kiarostami não é um cineasta; é um explorador dos limites do cinema. E este é, provavelmente, o seu mergulho mais fundo, aquele onde quase toca o fundo do oceano, os confins da galáxia.
“Shirin”, mais do que filme, é obra de arte. Cumprido o circuito comercial pelas salas, devia ser exposto num museu. Não é bom; é belo. Génio puro. Deslumbre. O último filme que deve ver quando só quiser um pouco de entretenimento, distracção, dar umas gargalhadas, esquecer-se do dia de trabalho. Para isso, estão aí todas as outras opções; este é para apreciar como história do cinema, arrojo, invenção.
E é ainda o atrevimento político de fixar longamente mulheres de um país, o Irão, onde é lei não olhar as mulheres nos olhos. O elogio sumptuoso da beleza desta longa galeria onde Juliette Binoche aparece banal. E é o poema estático, mas épico ainda, às actrizes. As actrizes que aqui são colocadas num exercício superior da sua arte: entregar-nos todo um filme sem filme. Sem palavras, sem acção, sem personagens, sem estrutura, sem passado nem futuro, sentadas, imóveis, apertadas entre outras pessoas numa plateia exígua. Porque “Shirin” são elas. É por isso que se chama “Shirin”, a princesa arménia, em vez de adoptar o nome completo do poema em que se inspira e que inclui o nome do rei Khosrow. É a história de Shirin e um pouco da história de cada mulher que a olha. Um friso fascinante desenhado pelas expressões de quatro gerações de actrizes: o riso, a comoção, o medo, a confiança, a atenção, a tristeza, o choque, o sonho, a frieza, a expectativa, a decepção, a surpresa, a dúvida, o devaneio, a cumplicidade, a incompreensão.
E, por isso, a dada altura, “Shirin” é ainda outra coisa: um espelho. Uma plateia que olha outra plateia. Centenas de olhares multiplicados uns pelos outros. Aparição de nós a nós mesmos.
AB
i, 2010.06.24
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