alguém anda a sonhar por nós


A ORIGEM

De: Christopher Nolan

Com: Leonardo DiCaprio, Marion Cotillard, Cillian Murphy

“Bom, onde é que eu ia?” Desde essa genial última frase de “Memento” que é assim: sai-se dos filmes de Christopher Nolan a perguntar o que irá ele fazer a seguir. Ainda não conseguiu o filme perfeito, mas é tão ambicioso, tem tanta vontade de fazer grandes filmes, que é impossível não o admirar. Enquanto houver tipos como ele, capazes de nos deixar nessa ansiedade, o cinema está salvo. Shyamalan despertou o mesmo sentimento, mas, depois, vieram os fiascos (veremos – e tememos – o que por aí venha com “O Último Airbender”). De resto, há os tarefeiros e os megalómanos, os consagrados e os independentes. Mas esta vontade kamikaze de montar uma grande ilusão, que é, no limite, a razão de amarmos o cinema, não abunda. Por isso, palmas ao jovem senhor Nolan, que, durante o dia, resgata o franchise “Batman” e, à noite, escreve algum do melhor entretenimento do século XXI.

“Memento” investigava a memória; “Insónia” os limites do estado de vigília; “O Terceiro Passo” a ilusão; “A Origem” instala-se nos sonhos. Há quem escreva policiais em motéis, lugarejos claustrofóbicos, ou grandes intrigas internacionais que passem por metade do Atlas; Nolan prefere cérebros. Escreve na fina fronteira onde dançam certezas e fantasmas. Podia ter sido filósofo ou neurocirurgião, mas fez-se cineasta e consolidou um estilo: não o sci-fi, mas o psi-fi.

Antes de embarcar n’ “A Origem”, aceite dois conselhos: um, as regras do jogo são apresentadas nos primeiros trinta minutos; decore-as aí, caso contrário vai passar o resto do tempo a correr atrás do filme. Dois: quanto mais a trama mergulhar nos sonhos, mais à superfície nos devemos manter. Porque, debaixo da fantasia, tudo é lógico, coerente e racional.

Dom Cobb (Leonardo DiCaprio) comanda uma equipa de especialistas em roubar ideias durante os sonhos. São recrutados por grandes empresas para se infiltrar no inconsciente de rivais e perscrutar os planos mais secretos. Aos poucos, percebemos que este trabalho pouco ético custou a Cobb uma vida familiar e a proibição de regressar a casa, mas só mais tarde conheceremos a causa e a extensão do problema. Um dia, a troco da vida que perdeu, propõem-lhe uma nova missão: em vez de roubar, Cobb terá de plantar uma ideia na cabeça de alguém.

A partir daqui, “A Origem” desenvolve-se num esquema de bonecas russas, com realidades dentro de realidades dentro de realidades. À superfície, as personagens estão no mundo factual, a dormir; abaixo, há o plano onde sonham; depois, o plano onde sonham que sonham; e, por fim, o limbo, na subcave do inconsciente, onde nem a certeza de que se existe existe – um sítio tão bom para leitores de Descartes como consumidores de LSD.

Talvez fascinado com a sua própria ideia, Nolan descurou a forma de lá chegar. A missão é encomendada por um gigante da produção energética (Ken Watanabe), para liquidar o concorrente Robert Fischer Jr. (Cillian Murphy); e a ideia a plantar é a de que Fischer desista do império que herdou do pai – pouco entusiasmante, convenhamos. Depois, tudo é forçado para que se cgue depressa ao primeiro sonho: Fisher, multimilionário, é sequestrado num avião comercial (não teria um privado?) onde viaja sozinho (não teria seguranças?) e, às tantas, até apanha um táxi (não teria carro e motorista?!). E ainda nos servem um engodo pseudo-metafísico sobre arquitectos e afins que lembra o pior de “Matrix”.

Mas o arrojo da ideia é tal e o espectáculo tão brilhante quando mergulha de vez na acção, que se lhe perdoa tudo. Afinal, é por filmes como “A Origem” que ainda faz sentido chamar a Hollywood a fábrica dos sonhos.

AB

i, 2010.07.22

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