a cruel ditadura da obsessão


VENCER

De: Marco Bellocchio

Com: Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Corrado Invernizzi

É uma coisa pessoal, caro leitor. Quando penso no baixíssimo quilate da classe política nacional, lembro-me de Itália e passa-me o rubor das faces. É que, apesar de Mussolinis, Andreottis, Berlusconis e afins, os italianos podem andar pela rua de peito feito e por direito próprio, senhores dum país com mais coisas boas por metro quadrado que qualquer outro: cidades, museus, monumentos, paisagem, ópera, automóveis, alta costura, culinária. E isso faz crer que a felicidade talvez seja possível, afinal de contas, apesar dos políticos.

Vem isto a propósito de “Vencer”, o novo filme do veterano Marco Bellocchio. A história conta-se em poucas palavras: quando Benito Mussolini era só um jovem activista socialista, tinha um caso amoroso com uma mulher, Ida Dalser, de quem teve um filho e com quem terá, talvez, casado. Depois, casou com outra mulher, tornou-se primeiro-ministro e recusou qualquer ligação a Ida, silenciando o caso até cair no esquecimento de que só sairia muito depois da morte dos envolvidos.

O talento de Bellocchio está em dar-nos a saber tudo isto desde início. Em 1914, quando Benito beija Ida num beco para se esconder da polícia e quando, depois, faz amor com ela jamais a olhando nos olhos, antes fixando um ponto indeterminado em frente, já todos sabemos que a vai deixar. Que o êxtase e o sexo não acontecem por Ida ou com Ida, mas pelos sonhos de glória que Mussolini tem para ele próprio. O país, a multidão, o poder, a vitória.

Bellocchio livra-se rapidamente dos factos elementares da narrativa porque “Vencer” não é, de modo algum, um filme histórico sobre os acontecimentos daqueles anos em Itália. É um tratado sobre a obsessão. A obsessão de Ida por Benito e a obsessão de Benito pelo poder – em qualquer dos casos, até à loucura.

Estamos perante uma farsa e uma tragédia; a farsa é Benito, Ida a tragédia. Benito vai deixar as manifestações de operários, o ateísmo e as críticas ao rei e transformar-se em Mussolini, Il Duce, ditador egocêntrico e hábil negociante com o Vaticano. Vai até juntar-se a Hitler na Segunda Guerra, ele que, na Primeira, fora soldado ao lado de ingleses e franceses contra a Alemanha. Mudou? Nem por isso. Na essência, foi sempre o mesmo louco obcecado pelo poder que fazia amor com Ida enquanto pensava, provavelmente, que possuía toda a Itália. Na primeira fase, Bellocchio representa-o através do actor Filippo Timi, carismático, másculo, homem. Na segunda, Mussolini é o próprio Mussolini, dado por imagens de arquivo enquanto discursa, ainda mais obstinado e memorável, mas já sem nada de homem, só boneco, clown, caricatura irreal de si mesmo.

Ida Dalser, pelo contrário, é sempre Giovanna Mezzogiorno. E, poupando-se na caracterização, conseguiu-se o efeito simples de a fazer permanecer a mesma através dos 20 anos que passam, quando tudo mudou em torno e ela própria se desfez por dentro, entre hospitais psiquiátricos, conventos e júris médicos ensaiados para lhe recusar a verdade até ao fim.

Quando Benito se torna Mussolini, a câmara fica com Ida, do lado da loucura. Os clamores da banda sonora acentuam o delírio, entre corredores de sanatórios onde paira, obsceno, um busto do Duce.

Ida Dalser era uma bela mulher que vendeu tudo para financiar o jornal com que Mussolini se catapultou para o poder. Desde 1915 que sabia que ele casara com outra mulher. Foi abandonada e recusada, até ao fim dos seus dias, por um homem de quem teve um filho que também morreria num hospício. Por que não arrepiou caminho? Por que se deixou perder por Mussolini? Não se sabe. A Itália que atire a primeira pedra.

AB

i, 2010.05.27

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