o natal é quando um cínico quiser
UM CONTO DE NATAL
Realização: Arnaud Desplechin
Com: Catherine Deneuve, Mathieu Amalric, Chiara Mastroianni
Assim de repente, não estou a ver outro universo em que haja tanto preconceito como no cinema. A ala supostamente intelectual tem o preconceito contra o blockbuster; a ala comercial tem o preconceito contra o filme independente, ou pior, europeu, ou pior ainda, iraniano ou afegão ou coisa que o valha; a ala do público tem o preconceito contra a crítica; todos têm o preconceito contra o cinema português que, por sua vez, tem o preconceito contra o público português.
O cinema chega a toda a gente. E ninguém tem de ser um especialista na matéria para ter uma opinião sobre um filme. Daí este clima em que ninguém reconhece autoridade a ninguém, ao mesmo tempo que todos têm a certeza de que a sua opinião é que está certa e quem não concorda com ela é, obviamente, um imbecil preconceituoso.
Citando o correio do leitor da última “Mulher Moderna”: enfim, vidas.
Vem isto a propósito de “Um Conto De Natal”, escrito e realizado por Arnaud Desplechin, nomeado à Palma de Ouro em Cannes 2008.
“Um Conto De Natal” conta a história dos Vuillard, família perseguida pelo cancro ou um cancro ela própria. Junon (Catherine Deneuve) e Abel (Jean-Paul Roussillon) tiveram quatro filhos. O mais velho morreu em criança com uma leucemia e sem um dador de medula óssea compatível; os três restantes são adultos separados por guerras familiares. Mas, agora, é Junon, a mãe, quem sofre de um cancro e precisa de uma medula compatível. Por isso, Abel convoca os filhos, os netos e o sobrinho Simon, para passar o Natal e tentar encontrar um dador.
Os problemas dos Vuillard estão-lhes, portanto, literal e metaforicamente, na massa do sangue. E são genéticos e hereditários. O seu encontro não termina em tragédia nem em comedia, mas antes num meio termo extraordinário de momentos de pura ternura e total violência. Tudo se diz ou se ouve com um sorriso nos lábios, um sorriso cínico de máscaras que é, provavelmente, a única forma de a vida prosseguir e ser possível. Excepto quando as personagens estão a sós. Quando as personagens estão a sós – como acontece a Junon ou ao filho do meio, Henri (o magnífico Mathieu Amalric, que os detractores do cinema europeu podem sempre ter visto como vilão no último Bond) – falam para nós, público. Olham a câmara e desabafam, como se a sala de cinema fosse, subitamente, um gabinete de psiquiatria com o nosso nome escrito na porta.
Ficam muitas coisas por explicar. Há actos cujas consequências não chegamos a ver. Mas isso é porque a história daquela gente não foi compactada para caber em duas horas e meia. Nós chegámos lá com os filhos para passar o Natal e saímos no fim, quando o Natal acabou. Eles já lá estavam antes e lá continuarão depois. E, a menos que nos voltem a convidar, não voltaremos a ter notícias suas.
Tudo isto faz de “Um Conto de Natal” um filme raro, adulto, inteligente e agradavelmente cínico.
Mas, para outros, será, simplesmente, “um filme francês”. Ou, como diz, logo na primeira frase, a wiki-crítica seleccionada no IMDB: “tédio como só os franceses conseguem fazer”.
Nota final para um assunto realmente importante: “Um Conto De Natal” junta Catherine Deneuve e a filha Chiara Mastroianni. A senhora Deneuve consegue a proeza de, aos 65 anos, ter um décimo das rugas da filha, de 36. É o problema do admirável mundo novo das cirurgias plásticas – um tipo já não pode olhar para a mãe para ver como é que a filha vai ficar. Tem é de ter a certeza de que aponta correctamente o número de telefone do cirurgião.
AB
i, 2009.05.22
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