quando as bruxas e os príncipes descobriram a ironia


É uma história pessoal que não interessa nada, mas sempre é menos óbvio que começar a conversa sobre um filme falando do filme. A primeira vez que me cruzei com Stardust, fui obrigado a mudar o nome a um livro. Eu aparecia na editora com uma coisa chamada Mapa Das Estrelas Cadentes e eles acenavam-me com um sorriso piedoso e a capa do (então) acabadinho de sair Stardust – O Mistério Da Estrela Cadente. Sob pena de alguém acreditar que, depois da colecção Vampiro, o mercado editorial português avançava para um’outra dedicada, surpreendentemente, àquele género de corpo celeste, fui convidado a pensar outro título que não esse que levara meses a magicar. Não sabia, nessa época, quem era o autor do livro exposto debaixo do meu nariz. Dei-me, empenhadamente, ao cuidado de não ler o seu nome na capa porque, doutro modo, poderia não resistir à tentação de o procurar com o fim muito específico de lhe abrir o lábio superior.

Só bem mais tarde me voltaria a cruzar com Neil Gaiman, com negligente atraso sobre todos aqueles que, entre nós, já seguiam as aventuras de Sandman, as graphic novels sobre a morte e outros temas fundadores da filosofia, os romances, as letras para Tori Amos, as séries de televisão. Continuava a querer partir-lhe a boca, mas percebia que (um) podia ser mais difícil do que previra inicialmente e (dois) o homem era demasiado ‘cool’ para que alguém lhe desejasse fazer tal coisa.

Ficámos assim. Fizemos as pazes, éramos amigos como dantes. O Neil nunca ouviu falar de mim, mas – nunca se sabe – vai na volta e até assina a Atlântico ou frequenta a Noite Americana.

Aqui há umas semanas, chegou a adaptação do livro dele ao cinema – fui ver. Até porque ainda não saiu a do meu. Aliás, mesmo o meu livro, propriamente dito, não chegou a sair. Stardust está como que órfão dum irmão. Dum irmão afastado. (estar órfão de irmão?! Afastado, ainda por cima?)

Gaiman actuou de modo a que, no fim, Stardust – o filme fosse ainda seu. Andou anos a discutir realizadores, acabou por ficar com um inexperiente Matthew Vaughn – certamente mais maleável que um qualquer peso médio da indústria – e acabou por indicar Jane Goldman, escritora sua amiga, para a co-autoria do script. Fez muito bem.

Não façamos a Stardust a desfeita de o classificar como película “para toda a família”. É, antes, o filme para os apreciadores do fantástico e para os detractores dele. É – essa é a sua maior glória – a obra que reconciliará uns e outros com o género e, simultaneamente, com os seus limites. Porque, Stardust é, de início a fim, um filme do fantástico, com terras míticas, bruxas, fadas, príncipes, feitiços, encantamentos e animaizinhos, mas é, em permanência, o maior crítico do género, caricaturando-lhe os excessos, expondo os lugares-comuns, invertendo e subvertendo a narrativa nos pontos onde ela mais naturalmente se encontraria standardizada.

A história do jovem Tristan e da saga do cumprimento da sua promessa à mulher de quem sonha vir a ser noivo, da viagem ao lugar mágico de Stormhold para recolher uma estrela cadente que lhe oferte, é servida por um dos mais notáveis elencos dos últimos tempos: Robert De Niro num hilariante Captain Shakespeare, Michelle Pfeiffer – este ano regressada às salas, depois de anos de ausência, em filmes de todos os feitios –, Peter O’Toole, Ricky Gervais, Sienna Miller, Rupert Everett, Claire Danes e até Ian McKellen como narrador. Só o protagonista, Charlie Cox, ainda precisará de convencer os sogros de que é mesmo actor e até entrou neste e naquele filme – os outros, certamente, já não vivem desses embaraços e é provável até que arranjem mesa na Bica do Sapato.

O todo são umas suculentas duas horas e dez de magia e grande sentido humor. Dois coros de personagens prometem ficar por muito tempo na memória do espectador: os másculos piratas de Captain Shakespeare e os divertidos fantasmas dos irmãos de Septimus, principal candidato ao trono de Stormhold. Rupert Everett está subaproveitado, Peter O’Toole marca mais pontos no humor depois de dar voz (e quase um corpo, portanto) ao crítico Anton Ego, a melhor personagem de Ratatouille, Claire Danes já desde Romeo + Juliet que não era tão bonita. E há ainda alguma filosofia nas letras miúdas, como nas palavras iniciais do filme: "a philosopher once asked: ‘are we human because we gaze at the stars, or do we gaze at them because we’re human?’ Pointless, really… ‘Do the stars gaze back?’ Now that's a question.” (não me lembro agora do começo do meu livro, mas de certeza que era pelo menos tão bom. Raios, Neil.)

AB

[Publicado na ATLÂNTICO nº 32 - desculpa, Rui]

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