Objects in the mirror are closer than they appear

Não há muitas maneiras pouco pretensiosas de começar por afirmar que o cinema é, como se sabe, uma forma por excelência de observar uma cultura a conceber aqueles que com ela se relacionam. Isto, que é banal, corresponde de resto a um filão clássico importante. É interessante ver como o cinema americano dos últimos anos – aqui, o 11 de Setembro é marcante – recobra energias na sua vontade de conceber e compreender o Outro.

Fá-lo como se o fizesse ao espelho, ou seja, pela produção de sentido e de conhecimento sobre o Outro e sobre si mesmo. Sucede que o Outro, ao espelho, pode ser o Próprio (como em The New World de Mallick). A esta distância de cada um para si se chama, julgo, reflexividade, e ao modo, dialógico. A metáfora é estafada, desde logo nas artes, mas tudo se passa como numa viagem, por fora e por dentro. E não é «ser descoberto» estar no destino da viagem de outros, justamente como em The New World? Vêem-se muitas pessoas a desembarcar, normalmente armas ao ombro, nos últimos anos. Saving Private Ryan, New World, Apocalypto, os dois Iwo Jima, e que mais?

O filme de guerra, por todas as razões a começar pela sua natureza necessariamente agonística, presta-se como é óbvio a suporte, favorito e fértil, para olhar o Outro e a Nós. Este ano de óscares, os dois filmes de Eastwood merecem o destaque. Achando eu que eles sofrem de algum esquematismo, serei eu próprio esquemático. Olhando para Cartas de Iwo Jima como que se conclui que se a cultura americana é «boa», há pessoas que são individualmente más. E que se a cultura japonesa é «má», existem pessoas individualmente boas (que até viveram ou estiveram nos EUA). E então vêm ao de cima, em estilo caracteristicamente «Crash-Haggis», o olhar moral, a contraditória natureza humana, impossibilitanto o a-preto-e-branco moralista e fomenando o convívio entre o nobre e o grotesco, o messiânico e o cínico. Os EUA, nação-redentora-cidade-na-colina-Nova-Jerusalém-na-terra, vive na circunstância de ter que lidar com o facto de se tomar a si mesma, preciosa e desgraçadamente, como a nação-redentora-cidade-na-colina-Nova-Jerusalém-na-terra. Os EUA, assombrados, encurralados, na própria imagem reflectida no cinema que fazem. Como na sala de espelhos da Feira Popular à procura da saída.

Mas o que fascina em Cartas de Iwo Jima, e que não encontramos em Bandeiras dos Nossos Pais (e daí pensar que a comparação dos dois é muito mais um exercício de ironia de Eastwood do que um convite à análise díptica), é a forma como o rigor serve, paradoxalmente, uma variedade trágica que não se confunde com simplicidade. Regressemos a The Thin Red Line/Barreira Invisível. Eis aí o verdadeiro contraponto de Cartas de Iwo Jima, eis aí o filme que pode convocar e permitir, honestamente, uma análise díptica (sem com isto querer estabelecer algum tipo de valoração: a minha preferência vai, claramente, para The Thin Red Line). O resto é querer tramar a obra de Eastwood. Os japoneses da Barreira Invisível são iguais aos americanos das Cartas de Iwo Jima, quase inexistentes, figuras distantes, ferozes e mortíferas. Mallick e Eastwood centram-se nos homens e nos efeitos da guerra sobre os homens. Daí em diante a opção formal de Eastwood (não tanto, por soluções narrativas, a de Mallick) torna a história uma tragédia. As personagens são tipos pois só isso podem ser na visão que Eastwood pretende passar. Não há lugar para aprofundar mais do que uma ou duas personagens. Nem isso se pretende.

As personagens que escapam à opção trágica, são, porém, desconcertantes. Tanto quanto são interessantes. Kuribayashi e Nishi não são japoneses fascinados com a América, o arquétipo do emigrante que busca mergulhar no melting pot norte-americano. As suas relações com a América são de paridade, de partilha e aprendizagem. O General aprende na América técnicas e estratégias que depois utiliza contra o inimigo (que, aliás, a mulher de um oficial americano insinua não ter ele dificuldade em eliminar). Esse mesmo General exige, num momento derradeiro, morrer em solo japonês, e mata-se com uma pistola americana, oferecida pelos próprios. Também o barão Nishi dialoga com um jovem militar americano, explicando que é amigo de actores e actrizes de Hollywood, colocando-se a si próprio como um entre iguais. Porém, não se entrega ao inimigo. E não há aqui, creio, nem contradição, nem simplismo. Basta regressar à Barreira Invisível para se encontrar as mesmas contradições, as mesmas perplexidades, entre os norte-americanos.

Outro movimento interessante talvez possa ser descrito como a «redescoberta» de África. A África no cinema americano recente deixou de ser a África do cinema clássico (de forma díspar: Casblanca e African Queen), mas deixou também de ser a África de Out of Africa. Cry Freedom abriu caminho. Com The Constant Gardener, Hotel Rwanda, The Last King of Scotland, Blood Diamond e Lord Of War abrem-se os temas das boas intenções pessoais que se afundam no pântano das instituições internacionais, a hipocrisia das políticas externas ocidentais, a corrupção das ONG e da ONU. Nada de muito novo. Depois, o clássico encontro do homem com a besta, o exótico, a natureza, o selvagem, enfim, com ele próprio, normalmente do outro lado da ponta da espingarda (evoque-se o excelente Caçador Branco, Coração Negro). Certo, mas também histórias de um tipo diferente: di Caprio é um branco da Rodésia, já lá estava antes de a câmara chegar. É como se, antes, as histórias dependessem da ida do branco lá (guerra, caça, o que fosse) para serem contadas (não tendo nós a certeza que África não era um cenário que se desmontava quando ninguém estava a olhar), e, agora, as histórias não dependessem da ida do branco para ter a dignidade de algo que vale a pena contar. As histórias acontecem numa realidade autónoma que não pede licença para acontecer, com actores e protagonistas próprios (brancos e pretos), e são de tipo muito cru, e isso tem consequências na madeira como são contadas: registo próximo do documentário, fotografia sem rodriguinhos, seca e directa.

Mas, regressemos um pouco atrás. Nós, o Povo Americano. Quem somos Nós? Respostas em The New World de Mallick e Apocalyto de Mel Gibson. Mas também: Nós, os que vivemos no planeta Terra. Entram Babel e Uma Verdade Inconveniente. Se o domínio da política é aquilo que liga o plano individual ao plano colectivo, estes filmes são eminentemente políticos e, com Gore, explicitamente. Ainda seguindo a cascata do 9/11, temos também a paranóia da informação e os limites da privacidade e dos direitos individuais que recuam inaceitavelmente face ao Estado securitário e intrusivo. Aqui regressamos a uma fileira do cinema clássico: o indivíduo face aos desmandos dos poderes públicos, de Capra a All the President’s Men. Ilustres sucessores em Good Night and Good Luck e The Good Sheperd, que falam do presente falando do passado, como uma ficção científica ao contrário. Que tudo isto tem a ver com os últimos ano da política externa americana e as questões internacionais (outra vez África, outra vez a Guerra) é óbvio e não merece elaboração. Excepto uma.

A busca americana pela intelligence não poderia deixar de fascinar Hollywood. O mundo da Intelligence partilha muito com o mundo de Hollywood. Ambos lidam com ilusões. Com aquilo em que conseguem fazer os outros crer. E para isso ambos pretendem chegar ao Outro. Mas enquanto que Hollywood está à procura do mundo to make a buck e fazer alguma crítica social pelo meio – crítica social destinada, sobretudo aos norte-americanos, explicada pelo panorama político interno – a Intelligence está à procura do mundo para proteger a América. Nem um nem outro pretendem fazer a pedagogia do Outro. Pretendem apresentar formatos, o que é bem diferente. Neste contexto a intelligence fascina Hollywood não só pelas razões políticas, pela forma como é um mundo obscuro, de manipulação e intriga – mas porque é um mundo que tem um poder inimaginável, muito para além da indústria do cinema.

Talvez a explicação esteja no ADN de Hollywood. Eivado de contradições e paradoxos, os Estados Unidos encontram em Hollywood um dos sistemas mais homogéneos do cosmos político norte-americano. Não se trata de maniqueísmos de Democratas contra Republicanos mas de, mesmo os mais conservadores elementos de Hollywood serem mais progressistas que o resto da América (exceptuada Nova York, que sempre fez o contraponto na Costa Leste)

Daí que tenhamos uma América a duas velocidades, o que aliás, é talvez a grande força da América. Por um lado, a América oblivious to the rest of the world, que vai ao cinema ver o Mundo que Hollywood lhe quer dar. Ou seja, o Outro, para a grande maioria dos norte-americanos, é um outro filtrado por Hollywood. A América profunda, não apenas o redneck Mid-west, se deixada to its own devices teria uma relação muito pacata com o Outro. O Outro seriam Eles e Eles seriam todos aqueles que não são americanos ou mesmo da community. Daí que a matriz genética de Hollywood mais progressista e, sobretudo reactiva a Bush e às suas políticas internacionais agressivas e, de certo modo, isolacionistas, tenha nos últimos anos derivado para um sucedâneo das políticas internacionais Clinton. Se Washington não faz, fazemos nós. O Outro que Hollywood busca – e que busca divulgar, nem sempre de modo inocente – é um Outro que se busca desesperadamente, como forma de voltar a ganhar sentido o papel dos Estado Unidos no Mundo. Não podemos esquecer que, com o fim da Guerra Fria, acabados os maniqueísmos básicos, os Estados Unidos são a única super-potência mas continuam sem interlocutores. Elefante numa loja de porcelana, aos Estados Unidos falta-lhe o Outro, no sentido mais íntimo e relacional do termo: falta-lhe saber dar-se bem com os outros meninos.

Hollywood, à sua maneira, vem ajudando nesta missão, também com uma boa dose de psicanálise, sempre mesclada de capitalismo. Alguém tem que pagar as contas. Mas isso não deve impedir que as novas causas sejam abraçadas. E se é verdade que há todo um mundo lá fora para explorar, é igualmente verdade que a própria terra americana nunca foi um melting pot pacífico. Mallick e Apocalypto, claro. Mas lembro também, por exemplo, Gangs of New York, já que estamos em tempos de Scorsese.

Não penso que a América se queira encontrar, até porque é arrogante demais para pensar que está perdida. Mas há uma genuína vontade de redefinir fronteiras, mesmo que seja inconsciente, mesmo que seja buscando no passado ou ficcionando o futuro.

RB/DM

Comentários

Anónimo disse…
Achei o texto mágico e muito bem feito. Sempre vi o cinema como "ponto de vista" de quem o produz e de quem o assiste. Muitos diretores se tornaram famosos entre o público por fazerem grandes retratos da sociedade e seus costumes sóridos e, às vezes, apelativos (Robert Altman, Sidney Lumet, Federico Fellini, Elia Kazan, etc). Agrada-me muito o interesse ressurgido pelos filmes de guerra (no qual destaco The Thin Red Line, do Mallick) e o interesse pela África existente nos últimos anos. Sinto saudade, no entanto, de produções calcadas em filmes dos anos 70 como Todos os Homens do Presidente e Os Três dias do Condor (seria interessante ver isso contado pelo olhar de hoje).

(http://claque-te.blogspot.com): Dreamgirls, de Bill Condon.

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