a vida inteligente dos verões

É ponto assente. Há três sítios onde um homem pode estar no verão: debaixo de uma palmeira, a beber daikiris, enquanto é refrescado por duas haitianas com leques gigantes feitos de penas de cisne; numa piscina com água tão gelada que tenha por companheiros da natação livre um simpático casal de pinguins migratórios; ou numa sala de cinema fresquinha, alimentada por generosos aparelhos de ar condicionado, não poucas vezes mais evoluídos do ponto de vista técnico que os próprios filmes em exibição. Como a hipótese a) está aqui apenas para nos recordar do quão miserável é a nossa vida e a b) cai pela raiz, devido à evidente impossibilidade dum pinguim deslizar, de barriga para baixo, desde o Pólo até às instalações do INATEL que servem o nosso bairro, resta-nos fugir ao calor correndo para o multiplex mais próximo.
Lamentavelmente, tal como 90% da população, também o bom gosto dos distribuidores costuma partir de férias por esta época do ano, e uma pessoa vê-se obrigada a seleccionar um título de entre quinze sugestões de animação, cinco filmes de porrada, doze de super-heróis, um português que só agora encontrou espaço em cartaz, e vinte e duas comédias, entre o romântico e o adolescente, todas com actores de segunda linha e a inevitável fórmula do “boys meets girl; boy and girl fall in love; boy and girl separate; boy and girl get together again”.
De modo a alimentar o vício, o cinéfilo frequenta todos os ciclos temáticos da Cinemateca, do Ávila, e do cine-clube do Olivais e Moscavide, que agora tem à frente uma associação de rapazes cultos, mas sem vida sexual desde que o Correio da Manhã acabou com o poster da edição de domingo. Em todo o caso, é assim que ele sobrevive nas semanas mais difíceis, até que surja no circuito comercial uma fita a sério, daquelas que só ele verá, mas poderá, mais tarde, oferecer em edição dvd à namorada fascinada com a sua bagagem cultural capaz de responder a mais de metade das perguntas d’ “A Herança”.
Tentando desviar o assunto das insistências dela: “Devias tentar… A sério! Ganhavas aquilo num instantinho! A tua mãe ia ficar tão orgulhosa… E o José Carlos Malato parece bem simpático!”, ele pode falar-lhe, por exemplo, de A Vida Secreta Das Palavras, de Isabel Coixet. Não é um “must”, para utilizar uma linguagem “so called” “trendy”, mas é o que há. E quem dá o que há, a mais não é… Bom. Adiante.
Coixet é uma directora e argumentista catalã, produzida, nesta fase, pela El Deseo, de Almodóvar, que nos deu, três anos atrás, o magnífico My Life Without Me, em que uma mulher, doente de um cancro em fase terminal, usa os seus dois últimos meses de vida para preparar a sua vida depois de si. Esse é, simultaneamente, o maior convite a ver este A Vida Secreta Das Palavras, mas também o seu maior embaraço. Porque A Vida Secreta Das Palavras não é uma pérola como era My Life Without Me. É a ostra, o fio, mas não a pérola. Com um elenco comandado pela mesma belíssima Sarah Polley, seguida por uma estrela internacional – Tim Robbins – e uma local – Javier Cámara, o enfermeiro Benigno de Hable con Ella, o novo filme de Coixet regressa à delicadeza e às pequenas boas ideias como escola cinematográfica, mas não tem a mesma consistência, a mesma urgência e, sobretudo, o mesmo rasgo.
De uma linguagem mais próxima dos independentes americanos, Isabel Coixet – que volta a assinar, também, o argumento – chega-se, agora, para o lado de cá do planisfério, para se candidatar a Lars Von Trier com bom fundo. A câmara ao ombro, a crueldade das histórias, as cicatrizes, a bondade no meio dos monstros, mas amando as personagens e deixando o espectador respirar nos ‘comic relieves’, ao contrário do senhor Dogma, moralista que só ele, empenhado, até ao último ‘frame’, em pontapear ao biqueiro os seus protagonistas angelicais.
A Vida Secreta Das Palavras serve-se de uma história: a de uma plataforma petrolífera nas vésperas do encerramento, depois de um acidente em que um homem morre e outro fica gravemente ferido e temporariamente cego. Hannah (Polley), a gozar o primeiro mês de férias da fábrica em quatro anos, voluntaria-se como enfermeira de Josef (Robbins). E o resto são os diálogos e confrontos entre um cego e uma surda, da dor ao inevitável golpe de Cupido. Em seu torno, magníficos secundários como um cozinheiro que acompanha a confecção dos pratos com uma banda sonora adequada às iguarias, um investigador que conta vinte e cinco milhões de ondas, enquanto joga basket com um ganso, um comandante resignado e mais ou três homens a braços com a solidão. Agora, esta narrativa poderia ter servido apenas para Coixet explorar a intimidade a que se propõe em título, mas ela quis-lhe acrescentar o trauma da guerra jugoslava (dedicando, de resto, a película à fundadora do IRCT, uma organização de protecção às vítimas de tortura), e aí o filme perde coesão, sabe a enxerto e roça o terreno perigoso do panfleto. O final acaba por ser apenas sofrível, desmerecendo a obra sólida e terna até aí conseguida. Mas sempre são duas horas ao fresco, com actividade intelectual incluída. O que, para uma noite de Verão, já não é nada mau.
AB

texto publicado na Atlântico nº17

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