Inquietude comparada

A rarefacção das minhas incursões a salas de cinema, motivada por razões várias, teve como principal consequência, o ter que passar a escolher os filmes que vou ver. Antes, um antes primordial, que nos remete para uma Idade de Ouro mítica e idílica, a única questão era escolher o filme que ia ver primeiro. Tudo isto foi chão que já deu uvas. Agora, com uma média de um filme de 15 em 15 dias (dá vontade de chorar, dá) estamos a falar de uma questão de subsistência. Daí que shortlist tenha que ser mesmo short e a decisão impiedosa. 

Quem entre no King - um cinema que se mantém sério, malgré le temps - tem, dentro da bilheteira, lá atrás, os cartazes dos três filmes que nos esperam. Inquietos de Gus van Sant, Melancolia de Lars von Trier e A Pele onde eu vivo, de Almodovar. Experimentem ler as sinopses de cada um destes filmes (e já agora juntem Um método perigoso de Cronenberg) e vejam o grau de felicidade e animação que vai por esse cinema fora. Em Inquietos um jovem depressivo apaixona-se por uma doente cancerígena em fase terminal; em Melancolia uma jovem depressiva lida bem com o fim do mundo, ao mesmo tempo que a sua irmã (não-depressiva) se passa com o fim do mundo; em A pele onde eu vivo um cirurgião plástico obsessivo e vingativo pretende aprisionar uma mulher para poder reconstruir a sua, que havia perdido num desastre de automóvel; finalmente, em Um método perigoso, uma mulher psicótica intromete-se na relação entre Jung e Freud, afectando-os para todo o sempre.

Como podem perceber, dada esta variedade de animadora oferta, uma pessoa decide-se pelo Gato das Botas. Contudo, era domingo, eu só podia ir ao cinema à tarde e o Gato das Botas - versão original, bem entendido - só passa à noite.

A história, contudo, já tinha começado há alguns dias, quando, entre os 4 filmes que descrevi sumariamente acima, optei pelo de Cronenberg. Pareceu-me a escolha óbvia: dos seus dois últimos filmes, um tornou-se um dos filmes das minha vida - Uma História de Violência - e o outro é muito bom - Eastern Promises - a coisa prometia, para mais com a repetição de Mortensen e a actuação do fabuloso Michael Fassbender. Resultado: uma seca. Não sei o que raios passou pela cabeça do Cronenberg. É verdade que há uma interessante história verídica como fonte, é verdade que é um bonito filme de época, mas continua a ser uma seca. Não desenvolve. Aliás, o ponto de que gostei mais é aquele que Cronenberg menos desenvolve, como se não tivesse reparado nele ou o quisesse ter deixado implícito: a preferência pelo enquadramento filosófico das motivações de Jung sobre as de Freud.

Ontem, depois de um sinal de Deus por intermédio da palavra "restlessness", que há uns dias me atormentou durante toda a uma tarde", fui ver o Inquietos de van Sant. Ia preparado para o pior, claro. Não me interpretem mal, eu gosto de van Sant. Ao contrário do Trier, para o qual tenho cada vez menos paciência - parece que ganhou agora um prémio com o Melancholia (com a Dunst a fazer de depressiva também eu...) - o van Sant sempre foi capaz de me surpreender. Pela negativa e pela positiva. Por exemplo, achei o Elephant um bocado chato. Mas o Gerry é um filme que devia ser estudado nas Universidades. O problema deste Inquietos era a sinopse. Eu passei a dar muita importância à sinopse. Errei. Estava certo antes, quando não lhes ligava nenhuma [importância].

Gus van Sant has done it again! Restless é um belíssimo filme. Primeiro, Henry Hopper. Sim, exactamente, filho de Dennis e com o mesmo olhar. Aquele mesmo olhar. Um potencial grande actor. Vamos ver. Para já, neste filme, uma boa interpretação, num papel difícil. A Mia Wasikowska também vai muito bem. Aliás, a combinação está realmente perfeita. O tema não podia ser mais difícil mas van Sant está na sua terra (em sentido figurado e literal, já que o filme se passa na bela Portland). Foi buscar a memória, como prova de vida, para poder fazer um filme (também) sobre a morte.

Filmes sobre a morte são sempre muito difíceis, porque para serem bons têm que ser sobre outra coisa qualquer, têm que ser relativos. A única forma de se conseguir comunicar o absoluto é por comparação. Por que acham que o Diabo foi inventado?

 DM

Ps - e viva a Bryce Dallas Howard.

Comentários

Ines Cisneiros disse…
Em defesa do Dangerous Method, é como diziam num artigo qq do Público: é um filme falado. Confesso que quando acabou achei que tinha ficado a meio..mas depois fiquei a remoer nalgumas coisas e conclui que cada personagem tinha cumprido o seu propósito: são teasers no meio da história veridica/biográfia/wtvr. Por isso gostei tanto: pela subtileza, I guess. Que é sempre o meu género preferido. acredito no "quis deixar implícito".

P.S: já tinha saudades de ver o Noite Americana a bold no google reader :)

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