Drive: uma ópera-prima (vi) - Os protagonistas

Talvez seja injusto referir-me apenas aos protagonistas quando Drive conta com um elenco secundário de luxo. Mas na ópera são sobretudo eles que contam. E, em Drive, a ópera, por muito que Bryan Cranston como Shannon, Albert Brooks como Bernie Rose, Oscar Isaac como Standard Gabriel, Christina Hendricks como Blanche e Ron Perelman como Nino sejam sublimes - e são - são verdadeiras personagens coadjuvantes que existem apenas para dar destaque maior aos protagonistas, sem que permitam ramificar a história. Eles estão lá apenas para que os protagonistas tenham o seu caminho muito bem traçado.

Dois exemplos apenas (SPOILER):

Bernie Rose é o verdadeiro anjo da morte (o bom anjo que faz parelha com o anjo mau Nino) do driver Gosling. Na cena em que são apresentados por Shannon há dois momentos fabulosos. O primeiro em que o condutor demonstra reticências em apertar a mão a Rose, como se percebendo quem ele é e, de imediato a troca de palavras em que o condutor oferece uma desculpa "as minhas mãos estão sujas" e Rose responde "as minhas também". Uma alegoria estupenda.

Standard Gabriel existe para o nível policial - é ele que precipita o climáx do filme - e para o nível emocional/moral - o do comportamento do condutor para com Irene. Nesta segunda dimensão, o bom carácter de Standard, não obstante ex-presidiário, surge como uma boa referência de Irene e um repto ao condutor, a lembrar a cena em que Standard relembra como ele e Irene se conheceram: "where's de Deluxe Version?". O condutor? (END SPOILER)

Restam, por isso, na tela, enchendo-a, o condutor e Irene, Ryan Gosling e Carey Mulligan.

Se para Gosling, basta a introdução de Drive, pré-genérico, para percebermos que vai estar único para a personagem, já Mulligan escapou-me durante boa parte do filme. Aliás, só percebi o génio da sua escolha quando chegamos à melhor cena do filme, de que falarei mais em detalhe no post sobre a violência, a cena do elevador.

Gosling, como diz Refn, é alguém para quem se pode estar a olhar horas. Isso ajuda Drive, porque Gosling conduz a câmara, mesmo quando não está a conduzir. Onde se percebe que Gosling, que muito me fez lembrar, em certos momentos Steve McQueen e noutros Paul Newman, é perfeito para o papel é na leitura operática que tenho vindo a defender. As várias fases do drama conseguem sempre arrancar algo mais a Gosling, sem no entanto perverterem a sua personagem de condutor. São alterações minimalistas permitidas, à partida, pela construção contida da personagem que Gosling opera. Assim, todas as pequenas mudanças têm um impacto maior e conseguem facilmente passar a mensagem. Gosling, além disso, parece ter percebido que uma construção minimal continha em Drive um paradoxo: rapidamente permitia, deixando a personagem respirar, torná-la maior, pela música e pelos temperos de Refn, os carros e a violência.

Isso permite que o entorpecimento, uma certa ausência que o condutor transmite, sejam enriquecidos e complicados pelos traços que a música, a violência e os carros lhe trazem. E nos trazem.

Quanto a Mulligan, em bom rigor ela é uma actriz secundária, mais uma num elenco de luxo, vítima da força centrípeta que o condutor exerce. Mas fá-lo de um modo tão complementar com Gosling, e a sua personagem, que obriga a lembrar que mesmo que alguém conduza no tango, são precisos dois para dançá-lo.

DM

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