Lorvão (revisitado)


Esta minha visão de Apocalypto como (mais) um ensaio de Mel Gibson sobre o papel do cristianismo na história é, obviamente, uma hipótese de interpretação de segunda linha. Quero com isto dizer que há em Gibson o respeito, goste-se ou não, das camadas narrativas que devem fazer as boas histórias. Como diria Eco: o policial está lá e é simples: A aldeia do índio é atacada, o índio esconde a família num buraco, o índio é feito cativo, o índio (dê lá por onde der) tem que voltar para salvar a família. E ponto final.

Por cima disto (ou por baixo, como preferirem) podemos divertir-nos a encontrar segundas, terceiras, quartas leituras apocalypticas. A primeira está obviamente no título. Que está uma palavra tão intimamente conotada com o cristianismo (apesar da sua generalização coloquial) a fazer no mundo pré-colombiano? Sobretudo num mundo pré-colombiano onde os espanhóis ocupam (ainda) tão pouco espaço. A resposta talvez possa ser que todo o filme é feito da frente para trás. Feito na pressuposição de que todos conhecemos a história e já sabemos com o filme vai acabar se não acabasse com os quatro índios em busca de um novo começo. É que já estamos fartos de saber que os dois Maias que ficam na praia vão conduzir os simpáticos espanhóis à capital do Império e que estes o vão arrasar. E, sinceramente, depois de termos estados duas horas a ver os mauzões dos Maias a despedaçar ossos de inocentes, esquartejar homens e mulheres, arrancar corações palpitantes de índios pintados de azul e decapitá-los em conformidade, até agradecemos saber (mas note-se, não ver) que os espanhóis vão pôr ordem naquilo tudo.

Serve-nos de consolo a chamada de atenção inicial? A referência à implosão civilizacional? Claro. Vista à luz desta hipótese interpretativa a epígrafe inicial dá até um certo tom asséptico e inexorável à intervenção castelhana. Estava escrito nas estrelas, apetece dizer.

E, posto isto, fica muito mais enquadrada (ou ganha novo enquadramento) a discussão que grassa nos meios académicos norte-americanos sobre o filme de Mel Gibson: a justiça e fidelidade históricas.
Vou deixar isso para outro texto.
DM

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