o longo caminho até ao ponto de partida
UM LUGAR PARA VIVER
De: Sam Mendes
Com: John Krasinski, Maya Rudolph, Jeff Daniels
Há filmes que falam ao cinema e filmes que falam à vida. Sam Mendes, depois de uma estreia meteórica, quis dedicar-se intensamente a falar ao cinema – a vida ficou para trás e, com ela, os favores de público e crítica. É que Mendes, particularmente apreciado entre nós pela eloquência desse sobrenome, começou onde muitos não acabam: a vencer os Óscares. “Beleza Americana” foi o triunfo estético de um encenador conceituado que trocou os palcos ingleses pelos estúdios de Hollywood e um dos filmes porta-estandarte de um certo cinismo fim de século.
Deliberadamente ou não, Mendes tornara-se um estrela. Uma estrela que, depois do casamento com Kate Winslet, passou a pequena constelação. A partir daqui, tentou fazer tudo bem com a excelente reputação, mas talvez tenha tentado demais. Com “Caminho Para A Perdição”, aventurou-se no noir; com “Máquina Zero” no cinema de guerra; e com “Revolutionary Road” no dramalhão familiar, quando o seu nome já caía no esquecimento e o falatório se devia exclusivamente ao reencontro de Winslet e Leonardo Di Caprio, onze anos depois de “Titanic”. Nada havia de especialmente errado em qualquer destes filmes; estava lá tudo no sítio certo, mas faltava o rasgo, a autoria. Mendes tornara-se um decorador de interiores de revista: fazia casas perfeitas, daquelas onde não mora ninguém. Não havia marca de água nem cheiro. Não se percebia o que queria ele afinal dizer ao mundo, para além de que sabia filmar – a única coisa que o mundo sabia desde o início.
Agora, em 2009/2010, quando já ninguém acorre às salas para ver um filme só porque é de Sam Mendes e ele próprio já não deve estar à espera de mais que um rodapé na história do cinema (e, já agora, também quando as revistas anunciam a separação de Kate Winslet), Sam deixa de se pôr em bicos de pés e faz “Um Lugar Para Viver”. Deixa de trabalhar para críticos e pares e filma para as pessoas. Abandona os manuais de realização e conta, finalmente, uma história. Faz um filme para falar à vida e não ao cinema. E sai-se bem: “Um Lugar Para Viver” é o melhor filme de Mendes desde “Beleza Americana”.
Comédia dramática ou “dramedy”, no neologismo americano, filme melancólico para depois das comédias românticas, “Um Lugar Para Viver” é um road movie que acompanha o casal Burt & Verona numa digressão pelos Estados Unidos, em busca de um lugar onde começar uma família. Com uma banda sonora pronto a vestir, mas que parece feita por medida e onde cabem Bob Dylan, Velvet Underground e Stranglers, “Um Lugar Para Viver” é a versão audiovisual perfeita das canções, num ambiente despido de filme indie que lembra, em muitos momentos, o lado menos sofisticado de “Nas Nuvens”.
Os trintões Burt e Verona esperam o primeiro filho e, sem nada de particular construído no Colorado natal, partem pelos territórios geográficos e sentimentais da América, parando em casa de familiares e amigos como quem vai a estações de serviço, na procura dum sítio suficientemente aconchegante para chamar casa. Conduzido pelas boas interpretações de dois actores mais habituados à comédia televisiva que ao drama cinematográfico, John Krasinski e Maya Rudolph, e com alguns bons secundários de Maggie Gyllenhaal, Chris Messina e Melanie Lynskey, “Um Lugar Para Viver” é, sobretudo, um filme de texto. Um “Pela Estrada Fora” versão familiar, escrito por Dave Eggers e Vendela Vida, o casal de escritores da moda.
Às vezes, é preciso fazer um longo caminho para se saber como começar. É a moral da história de Burt e Verona. E, provavelmente, a do próprio Sam Mendes. Aqui, do lado da vida real, os espectadores agradecem.
AB
i, 2010.03.31
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