no armário da condição humana
OS HOMENS QUE ODEIAM AS MULHERES
De: Niels Arden Oplev
Com: Michael Nyqvist, Noomi Rapace, Lena Endre
Certo. Os fanáticos do livro dificilmente serão convencidos pelo filme. É certinho como o dia nascer amanhã, Garcia Pereira ser o cabeça de lista do MRPP às próximas 25 eleições e as revistas cor-de-rosa continuarem a ver amor em todo o lado. O leitor estabelece uma tal relação de propriedade com as obras que, de vez em quando, é preciso lembrar-lhe que ele apenas leu o livro; não o escreveu. Aqui, o filme tem de resumir 500 páginas em duas horas e meia. E talvez não passe a mesma arquitectura intrincada da narrativa. E talvez não dirija o mesmo ataque a um país invejado de fora, mas que, dentro, tresanda a decadência. E nunca fará a vontade a cada um dos 15 milhões de fãs que já compraram livros de Stieg Larsson. Mas isso, já lá diz o povo, nem Jesus Cristo agradou a todos. Nem Jorge Jesus.
“Os Homens Que Odeiam As Mulheres”, o filme, é um grande thriller. E há duas coisas que adoramos nos thrillers: serem mais inteligentes que nós e darem-nos aquele prazer ganancioso de ir vendo as pedras soltas caírem no seu lugar do puzzle. Num tempo de muita tentativa vã, “Os Homens Que Odeiam As Mulheres” preenche os dois critérios. Logo, bingo.
Stieg Larsson morreu antes de se tornar uma celebridade mundial. Mas, na sua Suécia, tinha um número considerável de inimigos – ponto que deve contar positivamente, acima de qualquer outro, na avaliação de um CV. Jornalista e fundador da revista “Expo”, denunciava actos xenófobos e corrupção. Mas o que ninguém sabia era que, à noite, escrevia furiosamente acerca de um alter-ego, Mikael Blomkvist, jornalista e editor da revista “Millenium”, num percurso que só deveria terminar com o décimo volume e a fortuna pessoal do autor. Não foi assim. Larsson foi fulminado por um ataque cardíaco aos 50 anos, com apenas três tomos escritos e nenhum publicado. Hoje, a fortuna granjeada, decerto maior que o sonhado, é dividida entre pai e irmão. A mulher, Eva, por não ser legalmente casada com Stieg, ficou de mãos a abanar – à atenção dos vetos às uniões de facto. Mas, ao que parece, já descobriu 200 páginas do quarto volume no computador do falecido, mais as sinopses de quinto e sexto. Um bom PPR. E um grande contributo para a perpetuação do culto à saga “Millenium”.
Há pouco, chamámos thriller a “Os Homens Que Odeiam As Mulheres”. Talvez seja redutor. Mas não vale levantar muito mais o véu, para que o espectador que não leu o livro e que, logo, não reivindica propriedade intelectual sobre o mesmo, seja surpreendido e guiado por uma intriga magnífica.
Fiquemos pelos pontos de partida: Mikael Blomkvist foi sentenciado com três meses de prisão por difamação de um grande industrial. Antes de cumprir a pena, recebe um estranho convite de outro grande financeiro: Henrik, patriarca da família Vanger, pede-lhe que investigue o desaparecimento de uma sobrinha, 36 anos antes. Numa história paralela, somos apresentados a uma personagem fabulosa, Lisbeth Salander, mulher animal, poço de energia negra, feia e bela. Enquanto enfrenta o seu guardião legal, é uma estranha hacker-detective privada pós-punk.
São duas horas e meia que passam num piscar de olhos e em que a informação é meticulosamente servida na exacta medida entre a nossa necessidade de compreensão e o gozo do mistério. Personagens densas, passados paralelos, num filme que se ri dos truques típicos dum Dan Brown e vai sempre escavar mais fundo aos confins da ética criminal. O nível A do policial contemporâneo em que a sofisticação de intrigas financeiras e soluções tecnológicas coabitam, no íntimo, com as mais eternas perversões humanas.
AB
i, 2009.09.24
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