Kiss Kiss Bang Bang não existe, que eu vi

Para impune já basta terem-no feito. Ter-se gasto dinheiro e desperdiçado água para fazer aqueles cubos de gelo. Há filmes tão maus que nos desafiam. Devemos ignorá-los ou gastar com eles o nosso precioso e limitado desprezo incontido? Este foi também, de certa maneira, o desatino crucial, e pessoal, que Oliveira Martins enfrentou com a «Monarquia Liberal». A resposta dele foi prodigalizar-lhe o mais incontinente desprezo, não aceitar impunemente algo que considerava no íntimo um ultraje. É por esta razão que ainda hoje não sei bem se «Portugal Contemporâneo» deva ser o primeiro ou o último dos livros a ler sobre o século XIX. Pois com «Kiss Kiss Bang Bang» passa-se o mesmo. Mas, por outro lado, – pensei – há limites. Não sair a meio. Não ousar analisar o filme, não pretender decompô-lo nas pequenas infelicidades que o «constituem», não pronunciar em público as palavras que narram uma violação íntima, não ser – ao contrário de quem o pôs na porra do mundo – obsceno. Obsceno como um holocausto. Meço as palavras. Saí hoje à noite do cinema com um sentimento de desconchavo interior, de sorumbática tristeza. Derrotado, sim; vexado, oh sim. Soterrado, mesmo. De início, achei que iria usar a irritação para justificar a mim próprio que num dia de semana iria ver um segundo filme, à meia-noite. Uma traquinice à altura do champanhe grátis oferecido no Zeno do Alvaláxia no dia dos namorados. Sorri e tudo. Um «Wolf Creek» qualquer. Talvez «O Libertino», qualquer coisa. Mas não. Fui comido por dentro pelas aranhas pretas da tristeza, fiquei com vontade de me esconder e de não falar com mais ninguém, de não me explicar.

RB

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