O dia e a eternidade

Zé Manel,

o dia é este: o Angelopoulos morreu. Atropelado, enquanto realizava mais um filme. A eternidade começa agora.

Lembras-te do primeiro filme dele sobre o qual conversámos? Eu lembro-me perfeitamente, porque tenho o postal que me enviaste: O Passo Suspenso da Cegonha. Mastroianni e Moreau. Velhos e bons como dói.

Logo depois, já nós bem amigos, O Olhar de Ulisses. Keitel e o cinema como nunca os tinha visto.

Algures por esta altura, uma das minhas experiências mais interessantes na (antiga) Cinemateca: ainda estudante, esperava-me uma sessão de 4 horas de O Thiasos, um tour de force magnífico, que se tornaria o meu filme preferido dele.

Foi novamente através de ti que soube da estreia d'A Eternidade e um Dia. Primeiro o postal, depois a crítica. Tu adoras o filme, bem sei.

E, calhou ser o último filme que vi dele: comprei há pouco tempo o DVD de Trilogia: To livadi pou dakryzei (qualquer coisa como O prado chorando) mas ainda não o vi e nunca cheguei a ver A Poeira do Tempo. Em breve espero comprar O Apicultor, pelo qual sempre tive grande fascínio.

De que é que conversávamos quando Angelopoulos era a desculpa? O que me ensinavas? Um olhar da Europa. Não sobre a Europa, porque Angelopoulos vai muito além. Mas, como Oliveira, um olhar ancorado na (ou a partir da) Europa - nós que estamos tão precisados dele! - mas sim, um olhar sobre as pessoas. Sobre os seus, quase infinitos, modos de serem. E, contudo, sempre tão definidos pelo que nos rodeia e impregna.

Demorei bastante tempo a associar tudo isto a Braudel (aliás, demorei muito tempo a associar tudo a Braudel) e a perceber que o génio, em Angelopoulos, como em quase tudo, está em não sofrer da preguiça de escalas e perspectivas. Ter essa forma de sagacidade que é saber jogar com o geral e o particular, caminhar sem cesuras entre a indução e a dedução, procurar as parecenças que existem, claro, entre a eternidade e um dia.

É muito difícil isto, tão difícil, Zé Manel. E tão fácil para quem o faz, sem sequer pensar nisto. Como tu, como o Angelopoulos. Ambos imortais. Mas nem por isso menos saudosos.


DM

PS - espero que a Cinemateca faça em breve um integral dedicado a Angelopoulos.

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