Desconserto de cinzas


Que poderá haver em comum entre o último filme de Alexander Payne, The Descendants, e o último filme de Athena Rachel Tsangari, Attenberg? Muito pouco, dirão. Mas ainda qualquer coisa. Por exemplo: o número 23, eu e algumas cinzas.

Em The Descendants, Clooney começa a sua narração explicando que há 23 dias a sua mulher teve um acidente e está agora em coma profundo. Pretexto para um dos filmes mais desconcertantes que vi nos últimos tempos. O desconserto está numa indefinição que primeiro surge como assumida, para mais tarde surgir como negação de si mesma: não se trata de indefinição mas de assunção da vida como ela é.

Por uma questão da facilidade narrativa e emocional, o cinema de entretenimento raramente tenta abocanhar todo o espectro de emoções do ser humano. Daí ser comum separarmos o género em drama, comédia, e seus subgéneros, comédia negra, tragicomédia, etc. É mais fácil lidar com as emoções humanas se as isolarmos e arrumarmos e nos dedicarmos a elas, uma de cada vez. Já se tentarmos juntar tudo, e tentarmos colocar o cinema a imitar a vida, a coisa complica-se.

Numa sala grande da UCI Corte Inglés, na ante-estreia do The Descendants, os espectadores lidaram com a alternância de dor e humor, sempre pelo lado da gargalhada. É um expediente psicológico que ajuda muita gente a lidar com os súbitos excessos ou as súbitas assimetrias emocionais a que são expostas. Em The Descendants, Alexander Payne quer transformar as assimetrias emocionais em simbioses emocionais. Talvez mais do que isso, Payne quer que os espectadores compreendam que a vida não é uma alternância premeditada de alegria e dor mas uma confusão, ora divertida ora triste, de várias emoções. O Hawaii é um bom sítio para este desconserto, porque é um bocado fora do mundo, isto é, fora da ordem, do arrumado, do politicamente correcto. Cheio de falsas evidências, à espera de serem descobertas e destruídas.

Daí que talvez exista mais em comum entre The Descendants e Attenberg do que pode parecer à primeira vista. É que o decisivo para a diferença talvez tenha sido a mundividência de ambos os realizadores e não tanto as preocupações que os animaram, que podem ser bem parecidas.

É que uma coisa é querer realizar o desconserto da vida e da morte para americanos e outra é querer fazê-lo para europeus, para gregos. Onde Payne teve que ser mais ortodoxo, Tsangari procurou a heterodoxia. Da plasticidade, das imagens, da dança.

Attenberg assume o desconserto desde o início. A personagem principal, a jovem Marina, de 23 anos, tem como pilar da sua educação sentimental os documentários de Sir Richard Attenborough. Contudo, a sua melhor amiga, Bella, é incapaz de pronunciar correctamente o nome, enganando-se com Attenberg. E para Tsangari o engano está muito bem. De resto Attenberg é um filme de enganos, de desenganos, de descobertas e de assunções. Tal como em The Descendants, é a iminência da morte que oferece o pretexto e o fio condutor para a narrativa, acabando ambos os filmes, no mar, com as cinzas cremadas a serem espalhadas. Mas onde o filme de Payne se coloca num cenário luxuriante, Tsangari vai para uma Grécia inóspita. Claro que ambos os cenários têm os seus contrastes. Payne consegue, apesar de tudo, filmar um Hawaii não turístico, enquanto que Tsangari, mesmo tendo escolhido uma cidadezinha industrial falhada não consegue esconder o belo mar grego. Mas esses contrastes só servem o desconserto que ambos os filmes conseguem.

Apesar de mais difícil de tragar, talvez prefira, dentro desta leitura que estou fazendo, Attenberg. Há menos desculpas, menos virtuosismo técnico talvez. É tudo mais cru. Menos explicado (e, por isso, mais duro, menos imediato). Se tanto Clooney como Ariane Labed aproveitam a morte para repensar a vida, e se há a tal proximidade emocional simbiótica no modo como o fazem, entre o drama e a comédia, entre o rigor da tristeza e o desarranjo do humor, a verdade é que os mundos que os ancoram são bem diferentes. E essa diferença de mundos significa diferença de sons e de paisagens, de figurantes e de ruídos. Mas talvez sejam as mesmas as questões elementares, só a espuma mude. Ambos são filmes desconsertantes, porque ambos são filmes que não compactuam com a arrumação comum do cinema em categorias emocionais claras e estanques. É o modo como temperam essa desarrumação que os distingue totalmente. Foi um mero acaso tê-los visto de seguida e estar aqui a tentar falar-vos das parecenças que encontrei.

DM

PS - o autor utiliza, propositadamente, as palavras "desconcerto" e desconserto" de modo comutativo.

Comentários

Barreira Invisível Podcast