Paixão ou Morte! (ainda o Two Lovers)

Há uma certa mundividência do amor que o associa a algo de profundamente arrebatador e incontrolável e que, por isso mesmo - por essas marcas distintivas - o reconheceríamos como tal. Tudo abaixo disso é renúncia, é aceitar algo menor, é não querer tudo o que a vida nos pode dar.

É redutor.

Achar do amor isto e nada mais do que isto é tentador, claro, como são tentadores todos os estados que nos levam para longe do quotidiano, da rotina e, sobretudo, de nós mesmos. Como todas as tentações, a sua insídia consiste em dar-nos a realidade. Mas não toda a realidade.

Claro que a vida se pode viver em extremos - conheço vários casos, chama-se bipolaridade e tem produzido alguns dos melhores artistas da humanidade (e não por acaso é a doença de que padece Leonard em Two Lovers) - e uma vida assim vivida não concebe uma ideia de amor que possa ser mais do que o catalisador para uma alteração de estado, em permanentemente devir. O amor fica assim reduzido a uma combinação entre a doença e os fármacos (conhecidos) para a tratar.

Não creio que o velho Eros primordial, primeiro entre os deuses, mereça esta desfeita. O amor não é apenas uma paixão dos homens, está muito para além dela e pode habitá-las tanto como uma tranquila contemplação ou como uma viagem silente. Não é uma questão quantitativa e escapa a critérios qualitativos mensuráveis. É intuitivo. Ou estamos na sua presença ou não estamos. Certo: é verdade que é fácil tomar a árvore pela floresta, um arrebatamento por amor. Mas vale a pena o risco, pela promessa do que se alcança.

Creio que poderia olhar para Leonard e as suas duas amantes pelo prisma do amor/concupiscência (que cool que ele é nessa versão) e Michelle seria nesse caso a "possibilidade do amor". Creio, sobretudo, que, da perspectiva de Leonard, Michelle é sem dúvida a possibilidade do amor e Sandra "a mentira disponível". Mas é justamente por sê-lo - dele, Leonard e o que ele encarna - que parece interessante ir mais além e perguntar se James Gray, não está a querer, à semelhança da personagem de Joaquin Pheonix, polarizar um triângulo, para nele nos permitir ver algo mais. Essa polarização pode nunca se resolver (e assim resolvida estar) se optarmos por interpretar o regresso a casa, e o tácito pedido de casamento de Leonard a Sandra, como desistência, comodismo. Perante a impossibilidade de um grande amor, Leonard contenta-se com o que lhe sobra: uma mulher que o ama, um futuro no negócio das lavandarias. E isto parece inaceitável, não só para nós, espectadores românticos e idealistas, que queremos abocanhar este mundo e todas as suas possibilidades, mas parece muito mais inaceitável para o pobre do Leonard, que não devia desistir, que devia continuar.

Mas e se?... E se fosse preciso uma Michelle (depois já de uma noiva relembrada) para Leonard perceber o amor, revisitá-lo, recompreendê-lo. Ninguém acredita nisto. Estamos dispostos a acreditar que nos podemos apaixonar num segundo mas não podemos aceitar a ideia de que num instante percebamos o que isso é. Eis a magia do amor, dizemos.

E, no entanto, do outro lado da trincheira, há toda uma História de amores tranquilos e contemplativos, em que a paixão é apenas um momento de algo maior. Talvez Leonard tenha tido uma epifania juntos às águas e tenha percebido o amor de outra forma (não acho que seja coincidência). Talvez não. E tenha apenas desistido.

É bem capaz de ser esta última hipótese a correcta. Mas como o amor desafia razões e é uma questão de fé, eu creio na primeira.
DM

Comentários

Anónimo disse…
Eu também acredito na primeira, caro Domingos. Foi, sensivelmente, o mesmo que tentei explicar à minha garota (mas acho que ainda não a convenci). Enfim. Há muito filme de amor para mulheres; creio que este é um raro exemplo de filme de amor para homens. Para a angústia, verdade, beleza e transformação de sofre - felizmente - o amor dentro dum gajo. Aquelabraço. É sempre bom saber que, van sants à parte, continuamos a ter pomos cinematográficos da concórdia.
noite americana disse…
claro que sim! o van Sant é só para confirmar isso... Grande abraço. DM

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