Krzysztof Kieslowski: a cicatriz

Ao contrário de Wong Kar Wai estou longe de ter a sua filmografia completa. O imdb lista 40 filmes, entre curtas e longas-metragens. Eu tenho 12. Confesso que, no caso de Kieslowski, não tenho pretensão a ter a sua filmografia completa mas, algo diverso, a minha filmografia completa dele. Isto fica a dever-se à minha má relação com os documentários. Bem sei que são a oitava maravilha do mundo mas não me convencem. As minhas razões são estúpidas, bem sei, mas para a realidade gosto da realidade e para a arte gosto da ficção (mesmo que realista). Assim simplificado quase posso explicar não apenas porque quase desconsidero o início da obra de Kieslowski mas porque gosto tanto dele: integra, sem dúvida, o meu TOP5 de realizadores.

Kieslowski, como explicam recorrentemente os seus amigos, em entrevistas, tinha, quando jovem, um certo desprezo pela ficção. Para ele o cinema devia captar a realidade. Não me custa perceber este entendimento quando se vive numa Polónia oprimida pelo Partido Comunista. Daí que todas as suas curtas e mesmo as primeiras longas-metragens tenham oscilado entre o documentário puro e o documentário ficcionado. Mas é também por isto que mais aprecio a obra de Kieslowski a partir do momento em que nela se regista a epifania da ficção. Algo que gosto de situar entre os anos de 88 e 90, quando Kieslowski começa a pensar no Decálogo (uma palavra: sublime) e realiza, ainda antes, a Short Movie about Killing e a Short Movie about Love (uma palavra: magníficos).

A partir desse momento consigo encontrar uma mudança na mundividência - que haveria de reflectir-se na obra - de Kieslowski. Faz lembrar, à medida que lemos as cartas trocadas entre Einstein e Niels Bohr, como para o fim das suas vidas, Deus (denominado por essa palavra ou não) se começa a intrometer nas conversas de dois dos mais físicos da História da Humanidade.

Depois do Decálogo, repare-se, Kieslowski realizaria mais quatro filmes, o deslumbrante A Dupla Vida de Verónica e a Trilogia das Cores, com Azul, Branco e Vermelho (sendo que este último é um dos filmes do meu TOP5). Mas deixaria, o que para o caso que estou a tentar argumentar é importante, três projectos na gaveta: Paraíso, Purgatório e Inferno.

Como não notar uma diferença a partir do Decálogo. Não é apenas a entrada de Deus em cena, que aliás me parece sobrestimada. Mas é, seguramente, a entrada da metafísica e uma percepção de que a realidade, essa sim, é sempre muito sobrestimada.

A partir daí, por muito que goste de No End ou de The Scar, é impossível não encontrar um realizador maior, grandioso, sem nunca se deslumbrar com metafísico ou perder o fito da humanidade. Aliás, Vermelho, por exemplo, é talvez um dos filmes mais humanos que já vi.

Claro que eu fiz o percurso inverso e a minha versão generalizada (e com honrosas excepções) ao documentário pode explicar esta minha visão de Kieslowski. Mas se isso for verdade, ainda assim não significa que não goste da sua obra inicial. Significa apenas que gostei do modo como o seu trabalho evoluiu. Quando levei pancada da Dupla Vida de Verónica ainda era adolescente - perfeito! -, as Três Cores deram cabo de mim, depois iniciou-se o lento processo de regressar às origens: vi o Decálogo há uns quatro anos e o No End dois anos depois. Só ontem, The Scar. Ainda restam muitos, por exemplo Blind Chance, que tenho na prateleira, a que chegarei devagar mas onde chegarei trazendo os últimos filmes de Kieslowski. Ter esse privilégio, de poder visitar a obra de Kieslowski, conformado pelas suas últimas visões do cinema e do mundo, traz ainda mais maravilha e profundidade à realização do cineasta polaco. E, pelo meio, posso ainda ver Inferno, realizado por Danis Tanovic, com a Emmanuelle Béart.
DM

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