Não é o Gladiador. É melhor.


Sempre gostei de épicos. Para mim o Ben Hur já merecia os dez ou vinte óscares que ganhou mesmo antes de o ter visto. Se é épico, é bom. Bolas, they might take our lives but they'll never take away our freedom daí que what we do in life echoes in eternity. Sou assim, idealista, romântico, não choro quando o E.T. se vai embora mas não consigo conter as lágrimas quanto morre o Maximus Decimus Meridius (é verdade que a música da Lisa Gerrard ajuda).

Contudo, com os anos noto que tenho mudado. Calma, nada de sorrisos complacentes, nada de pensarem que finalmente me basto com o bom cinema. Não é isso. Entretanto foi-se temperando o idealismo com algum cinismo, o romantismo com algum humor. Enfim, comecei a constatar que aprecio mais o épico do bairro, a epopeia do underdog. Reparem, continuo a gostar do que realmente me apela nos épicos: a noção de maior que a vida. Mas se antes me bastava o maior que a vida solar, puro, imaculado, agora prefiro um maior que a vida escrito a meias entre o Lewis Carroll e o Tim Burton. Não é por nada: além de ter mais piada, em 90% do casos é mais real.

Vem isto a propósito daquele fenómeno que sucede uma ou duas vezes por ano. Creio que já aqui falei dele. O filme.

Como sou de alinhamentos cósmicos, espiritualidades e coisas do género, não acho que seja coincidência que dentro de pouco mais de mês e meio esteja em Bruges. Apesar de ser um regresso será como se fosse a primeira vez. Não é que tenha conseguido encontrar o segredo da inocência perdida mas somos sempre aquilo levamos para os lugares e o eu que vai a Bruges este ano nada tem que ver com o eu que lá esteve.

Daí que não ache que seja também um acaso que tenha gostado tanto de Em Bruges, primeira longa-metragem de Martin McDonagh. Com Colin Farrell, Brendan Gleeson e Ralph Fiennes.

Eu podia dizer que sou insuspeito pois até nem gosto de Farrell mas hoje percebo que isso (já) não é verdade. Mallick conseguiu o (quase) impossível, gostei dele no Miami Vice e Em Bruges ele é simplesmente maravilhoso. O mesmo se diga de Gleeson e Finnes.

Aliás, todo o elenco, sem nenhuma excepção, padece dessa característica: a maravilhalidade. Pode mesmo dizer-se que Em Bruges é o romance para adultos de Lewis Carroll. Bem, não tanto para adultos, pois isso também as Alices o serão mas para os pós-modernos. Ou coisa do género.

Um tipo que gosta de excentricidades, loucura, auto-comiseração, ridículo e puro e não adulterado nonsense tem que se sentir em casa Em Bruges.

Do princípio ao fim do filme consegue-se algo que não encontrava há muito tempo: a perfeita combinação entre profunda seriedade e o mais absurdo humor.

É verdade que a oposição não é assim tão estranha que mereça tamanho louvor. Afinal a angst e absurdo dos existencialistas era caso sério. Era o humor que estava em falta. Sobretudo o humor que, sem rodeios, diga ao que vem: a mim só me interessa a linha entre a vida e a morte. Aquela em que tudo é risível pois tudo ganha um sabor novo, infantil, divertido.

Em Bruges tem esse travo e esse final. Alguns dos diálogos (que digo eu?, todos os diálogos) são do mais fascinante, rico e multi-camadas que tenho visto. Recomendo, por exemplo, o diálogo antes do "tiroteio final".

Daí que também aqui exista um épico. Não já um homem das terras altas contra um rei inglês, não um soldado da hispânia contra um imperador romano mas um tipo de Dublin às voltas com a sua própria razão de viver. Em Bruges.

Mas o que realmente, realmente impressiona é esta combinação de que falo conseguir ser feita numa tecitura compacta que é comovente e hilariante ao mesmo tempo:

- Harry, ele não é um...
- Um homem tem que viver de acordo com os seus princípios. BAM!

Se Farrell arrasta consigo e com a sua dilaceração interior (magistralmente espalhada pelos mais variados efeitos psicológicos) Gleeson e Fiennes, em intervenções surreais, é verdade que também Bruges é uma personagem importante. Afinal, na hora decisiva é sobre a cidade que Ray pensa, imaginando-a um Inferno na terra, tanto mais saboroso. E talvez por isso a morte de Ray/Farrell para alguns seja decisivo, para outros desnecessário saber. A única coisa que vos posso dizer é que é tecnicamente possível sobreviver. Mas isso é o menos importante.

DM

Comentários

Unknown disse…
Aí está um filme que quero muito ver...
Concordo completamente. Um filme tão original e desconcertante como já não via há algum tempo.

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