As mãos

Nelson Rodrigues disse uma vez que um homem devia nascer com trinta anos feitos. É triste que um homem tenha de esperar pelos trinta anos para saber que a parte do corpo dos homens que as raparigas olham primeiro são as mãos. Há nisto qualquer coisa de injusto. Vivemos na sociedade do «achievement», meus amigos. Foi preciso muito sangue e umas quantas revoluções para vencer o determinismo adscritivo do berço. Até o Nuno da Câmara Pereira tem hoje, digamos, que saber cantar para se safar na vida. Com mérito, esforço e talento – assim nos dizem – nenhuma riqueza ou recompensa excede as nossas possibilidades. Ora, existem certos critérios eliminadores no olhar das raparigas que são profundamente reaccionários. Porque ninguém pode ir para o ginásio e sair de lá mais alto ou com as mãos melhoradas. As nossas mãos são o que são. O critério das mãos é por isso injusto e iliberal. Foi contra este tipo de tirania que todas as revoluções se fizeram, desde a Americana. Em suma, as mãos são uma vergonha e ainda bem que as minhas são lindas.

Quem também tinha umas belas mãos era Heath Ledger. Lembro-me da cena em Brokeback Mountain em que Ennis (irlandês para «ilha») regressa a casa dos pais de Jack e agarra e abraça a camisa dele no roupeiro, rompendo, até pelo choro, o armário emocional em que estava encerrado. Ennis tem uma dificuldade: não consegue amar os outros. Não que tenha qualquer problema mecânico, pelo contrário. Mas o amor não o emancipa, a paixão que sente tolhe-o. Ennis poderia dizer o mesmo que Ricardo Reis disse do amor, que nem só quem nos odeia e nos inveja nos limita e oprime, que quem nos ama não menos nos limita, que o amor oprime porque exige amor, e que deseja ser livre. Olhando para as mãos dele no filme vêem-se bem estas tensões cruzadas, a começar pelo não saber bem onde pô-las quando quer ocultar o desejo ou como usá-las com delicadeza quando agarra, apalpa, concretiza o desejo. Heath Ledger morreu anteontem e tinha umas belas mãos.

[publicado hoje, 25.01.2008, no MEIA HORA]

RB

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