michal mann vice
Em pequeno, estava certo disto: que o Rui Veloso do “Chico Fininho” e “Um Café E Um Bagaço” e o Veloso, lateral ora direito, ora esquerdo, do Benfica, eram uma e a mesma pessoa. Quanto o admirei por reunir aquelas duas facetas extraordinárias! E como se transformava com um simples par de óculos (porque, obviamente, o bigode – da época – e o cabelo eram os mesmos). Uma espécie de Clark Kent / Super-Homem de fabrico nacional que, de manhã treinava na Luz;; à tarde, ensaiava com os amigos e, no fim-de-semana, repartia-se alegremente entre actuações em programas de televisão e jogos transmitidos pela RDP. Até ao dia em que, já em adiantada idade dos porquês, me tentei certificar junto do meu pai do carácter superior deste Da Vinci ibérico: “Este Veloso é o mesmo que joga no Benfica, não é?”, enquanto apontava, no ecrã, uma entrevista do artista enquanto músico ao inevitável Júlio Isidro.
Foi difícil sobreviver à resposta negativa do progenitor. E perdi a oportunidade de, anos mais tarde, compreender numa acepção verdadeiramente nova o tema “Porto Sentido”. Quando o César Brito encaixou aqueles dois golos em coisa de cinco minutos na baliza das Antas, foi, caros amigos, profundamente sentido…
Vem isto a propósito de uma questão extremamente importante para a critica que se segue: é que a dislexia não se perdeu com o crescimento. E, ainda hoje, troco os nomes de Thomas Mann e Michael Mann, de um modo tão feliz que não consigo senão pensar que exista, de facto, uma qualquer afinidade entre os dois. É evidente que Veneza seria outra se Michael filmasse “A Morte Em…” do primo Thomas. Seria a mesma cidade de Heat, Collateral e Miami Vice.
E aqui temos uma boa porta de entrada para o filme. O que há de Miami em Miami Vice? A cidade nocturna de Michael Mann. Se se chama Miami ou L.A. ou qualquer outra coisa, pouco importa. Já agora, o que há de Miami Vice, a série, em Miami Vice, o filme? Pouco. Algumas coincidências. Nem a música. Ainda bem. Os saudosistas que discutam com o próprio Michael, produtor da série, se valia a pena recuperar mais isto ou aquilo ou usar apenas meia dúzia de referências e ambientes como ponto de partida para algo melhor.
A cidade nocturna. Especifiquemos: Michael Mann inventou a noite a cores. Não é de agora; é dos filmes para trás. A cada um, contudo, a obra aprimora-se. Não é fácil de explicar; é preciso ver, que é o melhor que se pode dizer de um filme. Quem viu, sabe do que estou a falar. À medida que Mann, o Michael, desenvolve o seu domínio do digital, essa cidade cresce e é cada vez mais expressionista e, qualquer dia, ainda é, ela própria, nomeada ao óscar de Melhor Actriz Principal.
Mais do que isso: em termos plásticos, Miami Vice é soberbo. Além da paisagem nocturna urbana, Mann repete, também, o seu “cinema sincronizado”. Como aquele género estranho de natação. As lanchas a curvar, os braços dos actores a erguer-se, a dança dos corpos e a da câmara, tudo em perfeito simultâneo. Depois, acrescenta-lhe, desta investida, a descoberta das peles. São inúmeros os momentos em que se deleita a percorrer as peles dos corpos que exibe, os poros, a textura, os fios de cabelo colados. Junte-se a banda sonora magnífica, a respiração profunda do ritmo. Tudo quanto pode ser tocado. Até aqui, Miami Vice é 20 valores.
Depois, vem o resto. O conteúdo. Tenhamos presente que, num filme de acção, a forma é tão grande que também conta para o conteúdo.
O plot não é brilhante. Os agentes especiais Sonny e Ricco fazem-se passar por intermediários no negócio do narcotráfico para apanhar os inevitáveis cabecilhas de determinada rede. É isto. Claro que surgem problemas e envolvimentos pessoais e aqui o acrílico perfeito de Mann começa a estalar. O fundo humano dos heróis e anti-heróis de acção que ele próprio edificou a obras de arte em filmes anteriores são, desta feita, pouco mais que uma caricatura de si mesmos: previsíveis, superficiais, pouco convincentes. Desde a sua primeira aparição que sabemos que a mulher de Jamie Foxx será metida ao barulho; o amor imenso de Colin Farrell por Gong Li não vai lá nem com cuspo e, por fim, oferece-se recompensa a quem souber do paradeiro da química entre os dois grandes amigos Sonny (Farrell) e Ricco (Foxx).
A propósito de coisas desaparecidas: alguém sabe do talento de Colin Farrell? Aquele que emergia, esmagador, em Minority Report, por exemplo?
Mas acabe-se o que se ia a dizer sobre o texto. Do próprio Mann. Talvez fosse melhor ter pedido um a Thomas. Há passagens a raiar o canastrão. Não é que seja mau, mas pedia-se bem mais a quem arrancou, em Heat, algumas das melhores frases de sempre do cinema do género. Valham-nos alguns gags (como aquele acerca da localização de Havana e o da cena de amor entre Ricco e a mulher) e dois belos momentos: o primeiro encontro entre os heróis e Yero e a sequência que culmina com a execução de outro dos maus por Gina (Elizabeth Rodriguez). Sem texto e mais lá para o final, outro instante épico: um certo disparo de Ricco em que apetece gritar “Golo!” e esperar o replay. Depois, há personagens que desaparecem. Pura e simplesmente. O mauzão: Montoya; o misterioso senhor Fujima; até o superior de Sonny e Ricco. Outros nós parecem ficar por desatar.
Em poucas palavras: se déssemos estrelas, seria um quatro. Porque Mann continua a ser o maior no cinema de acção, porque é sempre drama e sempre bailado e Miami Vice é, afinal, cinema para ver e tocar, a obra mais ‘cool’ do ano. Mas está longe do seu melhor. Há muitas pequenas imperfeições para isso. Não é Michael Mann de segunda, mas é, seguramente, de segunda de honra.
Nota: Ana Cristina Oliveira aparece durante dez magníficos segundos logo ao início do filme. E não é uma ironia.
AB
Texto publicado na Atlântico nº 18
Foi difícil sobreviver à resposta negativa do progenitor. E perdi a oportunidade de, anos mais tarde, compreender numa acepção verdadeiramente nova o tema “Porto Sentido”. Quando o César Brito encaixou aqueles dois golos em coisa de cinco minutos na baliza das Antas, foi, caros amigos, profundamente sentido…
Vem isto a propósito de uma questão extremamente importante para a critica que se segue: é que a dislexia não se perdeu com o crescimento. E, ainda hoje, troco os nomes de Thomas Mann e Michael Mann, de um modo tão feliz que não consigo senão pensar que exista, de facto, uma qualquer afinidade entre os dois. É evidente que Veneza seria outra se Michael filmasse “A Morte Em…” do primo Thomas. Seria a mesma cidade de Heat, Collateral e Miami Vice.
E aqui temos uma boa porta de entrada para o filme. O que há de Miami em Miami Vice? A cidade nocturna de Michael Mann. Se se chama Miami ou L.A. ou qualquer outra coisa, pouco importa. Já agora, o que há de Miami Vice, a série, em Miami Vice, o filme? Pouco. Algumas coincidências. Nem a música. Ainda bem. Os saudosistas que discutam com o próprio Michael, produtor da série, se valia a pena recuperar mais isto ou aquilo ou usar apenas meia dúzia de referências e ambientes como ponto de partida para algo melhor.
A cidade nocturna. Especifiquemos: Michael Mann inventou a noite a cores. Não é de agora; é dos filmes para trás. A cada um, contudo, a obra aprimora-se. Não é fácil de explicar; é preciso ver, que é o melhor que se pode dizer de um filme. Quem viu, sabe do que estou a falar. À medida que Mann, o Michael, desenvolve o seu domínio do digital, essa cidade cresce e é cada vez mais expressionista e, qualquer dia, ainda é, ela própria, nomeada ao óscar de Melhor Actriz Principal.
Mais do que isso: em termos plásticos, Miami Vice é soberbo. Além da paisagem nocturna urbana, Mann repete, também, o seu “cinema sincronizado”. Como aquele género estranho de natação. As lanchas a curvar, os braços dos actores a erguer-se, a dança dos corpos e a da câmara, tudo em perfeito simultâneo. Depois, acrescenta-lhe, desta investida, a descoberta das peles. São inúmeros os momentos em que se deleita a percorrer as peles dos corpos que exibe, os poros, a textura, os fios de cabelo colados. Junte-se a banda sonora magnífica, a respiração profunda do ritmo. Tudo quanto pode ser tocado. Até aqui, Miami Vice é 20 valores.
Depois, vem o resto. O conteúdo. Tenhamos presente que, num filme de acção, a forma é tão grande que também conta para o conteúdo.
O plot não é brilhante. Os agentes especiais Sonny e Ricco fazem-se passar por intermediários no negócio do narcotráfico para apanhar os inevitáveis cabecilhas de determinada rede. É isto. Claro que surgem problemas e envolvimentos pessoais e aqui o acrílico perfeito de Mann começa a estalar. O fundo humano dos heróis e anti-heróis de acção que ele próprio edificou a obras de arte em filmes anteriores são, desta feita, pouco mais que uma caricatura de si mesmos: previsíveis, superficiais, pouco convincentes. Desde a sua primeira aparição que sabemos que a mulher de Jamie Foxx será metida ao barulho; o amor imenso de Colin Farrell por Gong Li não vai lá nem com cuspo e, por fim, oferece-se recompensa a quem souber do paradeiro da química entre os dois grandes amigos Sonny (Farrell) e Ricco (Foxx).
A propósito de coisas desaparecidas: alguém sabe do talento de Colin Farrell? Aquele que emergia, esmagador, em Minority Report, por exemplo?
Mas acabe-se o que se ia a dizer sobre o texto. Do próprio Mann. Talvez fosse melhor ter pedido um a Thomas. Há passagens a raiar o canastrão. Não é que seja mau, mas pedia-se bem mais a quem arrancou, em Heat, algumas das melhores frases de sempre do cinema do género. Valham-nos alguns gags (como aquele acerca da localização de Havana e o da cena de amor entre Ricco e a mulher) e dois belos momentos: o primeiro encontro entre os heróis e Yero e a sequência que culmina com a execução de outro dos maus por Gina (Elizabeth Rodriguez). Sem texto e mais lá para o final, outro instante épico: um certo disparo de Ricco em que apetece gritar “Golo!” e esperar o replay. Depois, há personagens que desaparecem. Pura e simplesmente. O mauzão: Montoya; o misterioso senhor Fujima; até o superior de Sonny e Ricco. Outros nós parecem ficar por desatar.
Em poucas palavras: se déssemos estrelas, seria um quatro. Porque Mann continua a ser o maior no cinema de acção, porque é sempre drama e sempre bailado e Miami Vice é, afinal, cinema para ver e tocar, a obra mais ‘cool’ do ano. Mas está longe do seu melhor. Há muitas pequenas imperfeições para isso. Não é Michael Mann de segunda, mas é, seguramente, de segunda de honra.
Nota: Ana Cristina Oliveira aparece durante dez magníficos segundos logo ao início do filme. E não é uma ironia.
AB
Texto publicado na Atlântico nº 18
Comentários
Mas será que este Miami Vice chega a ser expressionista? Será que se chegou a ver algum dos brilhantes jogos de luz e sombra que marcaram o Cinema de Murnau ou Lang? Mais do que isso, não será este Miami Vice mais uma prova de que Michael Mann acaba por ser um Jean-Pierre Melville (com as devidas distâncias, claro) dos tempos modernos?
Tirando estas dúvidas, e voltando ao que importa, este Michael Mann é mesmo de primeira.
Aqueles que me conhecem, sabem bem como tenho profundos ódios de estimação no meio cinematográfico. Detesto a Júlia Roberts, odeio o Antonio Banderas e, no momento presente, tenho dificuldade em olhar para aquela cara de menino abandonado que o Colin Farrell exibe como bilhete de identidade. Tenho saudades do tempo em que este mesmo Colin Farrell se assumia como um homem e não como um cãozinho desamparado. Será que assistiremos ao regresso do Sr. Colin Farrell?
Parabéns por este Noite Americana!
Gostei de ler, mas discordo.
Para perceber porquê, mais vale ler a minha crítica do filme em:
http://obunker.blogspot.com/