Enciclopédia Moderna da Vida Íntima - III (e termina)

Antes de me vender ao grande capital e quando tinha a mania que havia de ser escritor participei com um orgulho sempre renovado na mítica revista Inventio, agora objecto de culto refinado, onde pontuaram nomes como Luís Filipe Borges, Pedro Lomba ou Alex Andros. No quarto número, dedicado ao tema Obsessões lembro-me de ter escrito uma pequena história intitulada A Caixinha de Deneuve. Nessa historinha tomava como mote uma das cenas mais marcantes de Belle de Jour e ficcionava daí em diante. Trata-se da cena da caixinha, que já aqui referi, em que o anafado chinês mostra o conteúdo oculto de uma caixinha que zumbe para grande escândalo das meninas da casa de Madame Anais, excepto para Belle de Jour que se ri, divertida. O espectador, esse, nunca saberá do que se trata.

Em Lost in translation podemos dizer, sem grande exagero, que o tema da caixinha do chinês, é todo o filme. O que Bob diz a Charlotte no fim, podemos dizê-lo, é irrelevante. Mas dificilmente conseguiremos viver descansados com essa convicção. É verdade que o filme vale pelo estado de perdição em que os dois protagonistas se encontram mergulhados e pelos caminhos que (por isso) tomam, pelas questões que nos fazem enfrentar. Mas é possível sobreviver à linguagem de redenção que sobrevem ao abraço, ao segredar e ao beijo de Bob a Charlotte? Cada um reagirá à sua maneira mas será, no mínimo, difícil, perante as palavras ocultas, ignorar a restante linguagem cinematográfica que nesse momento se transfigura. Os risos e sorrisos de ambas as personagens, os planos abertos e promissores, o Just Like Honey dos The Jesus and Mary Chain. Tudo ali indica uma libertação e uma pacificação, cuja razão e o sentido nos escapa mas que nem por isso é menos real.

Seria interessante acreditar que o não sabermos é uma dávida de Sofia Coppola. Um desespero acompanhado da suprema liberdade interpretativa. O espectador sozinho consigo e a criação. Talvez.

DM

adenda: na penúltima linha há uma gralha. "dávida" é "dádiva". Mas gosto tanto do erro que o deixei ficar. Grato pela compreensão.

Comentários

Anónimo disse…
boa, boa, boa!!!!É isso mesmo!

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