dos fracos também reza a história
Estreias: EM DIGRESSÃO
De: Mathieu Amalric
Com: Mathieu Amalric, Miranda Colclasure, Suzanne Ramsey
A nobreza da obra de arte consiste em não servir para nada. Não mata a fome, não cura, não transforma chumbo em ouro. É um luxo do intelecto, o exercício supremo de uma inteligência que distingue homens de animais. Dito isto, é evidente que não seríamos os mesmos sem séculos de literatura, música, teatro, pintura, cinema. A arte é aquilo com que podemos explicar a célebre distinção de Oscar Wilde segundo a qual todos vivemos no esgoto, mas alguns olham as estrelas.
Mas o fenómeno torna-se mais misterioso pensado caso a caso. Não precisávamos de “Casablanca” antes de o filme existir, mas, a partir do momento em que existe, passámos a precisar. Ora, acontecerá o mesmo com “Desaparecido Em Combate”?
“Em Digressão” vive algures neste espaço indefinido. Vemo-lo e pensamos que não fazia falta. Perguntamo-nos porquê, a quem se dirige, a que responde, que questões levanta, onde nos toca, se é que toca. Estamos perante um filme que não começa nem acaba; aliás, um filme que parece ter começado antes das câmaras chegarem e que certamente continua depois dos créditos finais. Passou por nós, actuou e seguiu em frente.
Compreendido isto, “Em Digressão” começa a revelar-se. É deliberadamente o que é. Não quis vir do nosso coração nem em direcção a ele; nem da nossa cabeça nem em direcção a ela. Talvez nem tenha querido ficar; talvez tenha querido estar apenas de passagem. Poderá questionar-se se isso funciona, mas não a ousadia. E o atrevimento valeu a Mathieu Amalric, um dos melhores actores franceses da actualidade, o prémio de melhor realizador em Cannes.
Amalric, dum lado e doutro da câmara, encarna uma antiga estrela do showbiz. Caído em desgraça por razões nunca reveladas (tal como os motivos para o fracasso do seu casamento), emigrou para os Estados Unidos e está agora temporariamente de regresso para uma tournée. Mas, no espectáculo em questão, não é sequer a estrela; é um produtor, um agente e, volta e meia, as actrizes fazem questão de lho recordar. “New Burlesque”, assim se chama, é um espectáculo de cabaré onde um grupo de mulheres roliças se propõe apresentar novas formas de fazer o mesmo de sempre: um strip-tease embrulhado em pretensões artísticas.
Não por acaso, o facto de estas mulheres terem corpos imperfeitos nunca é tema do drama. Estão ali, exibindo amor-próprio, recolhendo o calor da assistência e apoiando-se umas nas outras numa lógica familiar que parece esconder feridas e fracassos antigos de que o filme, de igual modo, nunca falará. Afinal, somos meros espectadores. Não temos direito a conhecer as artistas. Vemos o espectáculo e é tudo.
Entre as actuações, seguimos a digressão pessoal de Joachim (Amalric): os encontros com a Paris aonde já não cabe, o irmão que fez sucesso, os filhos, os antigos companheiros que o renegam, uma simples desconhecida numa bomba de gasolina, as pequenas manias dum vencido da vida: roubar rebuçados– será fome? – ou uma gloriosa embirração com os televisores e bandas sonoras que enchem de ruído os hotéis e restaurantes deste mundo – para não se lembrar de que já não verá neles o seu rosto nem ouvirá a sua voz?
Há, no entanto, uma canção que consente. A canção que Amalric transforma no momento mais belo do filme: “I Will” (Radiohead), interpretado por membros da trupe, rodeados pelos restantes e pelos filhos de Joachim. De que fala? De alguém que se quer esconder, que não deixará os filhos sofrerem o mesmo impacto que ele com o mundo, e que promete, num futuro indefinido, levantar-se. E, de repente, “Em Digressão” enche-se de sentido. Está é lá ao fundo, debaixo das plumas e das lantejoulas.
AB
i, 2011.04.21
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