como pensar num círculo e desenhar uma espiral


COMO DESENHAR UM CÍRCULO PERFEITO

De: Marco Martins

Com: Rafael Morais, Joana de Verona, Daniel Duval

Marco Martins deixou alta a fasquia com “Alice”. Era uma coisa à parte, autêntica, sem os tiques das especialidades do cinema português – a imitação do francês de autor e a imitação do americano comercial – e que, por isso, agradou a cinéfilos e seres humanos normais. Não tinha nada a mais ou a menos. “Como desenhar um círculo perfeito” podia, na verdade, ser o nome do making of de “Alice”.

À segunda, é mais difícil. O autor que surpreendeu e encantou na estreia tem, agora, de arcar com a expectativa e arriscar-se a ouvir que repetiu a fórmula ou que se vendeu. Mas Martins não se vendeu nem tentou fazer outro “Alice”. Seguiu um caminho difícil, pantanoso; arriscou. Volta a contar o drama íntimo de uma família, de novo com silêncios que deixam quase tudo por dizer. E volta a procurar a história perfeita, sem pontas soltas. Mas isso não são repetições; é a coerência dum autor, mundo, fantasmas, obsessões. O que aconteceu foi que, ao segundo ensaio, ficou aquém do recorde pessoal. Claramente aquém. Mas ainda tem todos os ensaios e tentativas que quiser.

Guilherme e Sofia são dois irmãos gémeos de 16 anos. Ele é apaixonado pela irmã – percebemo-lo logo na primeira cena, numa discoteca filmada com um azul que é quase um souvenir de “Alice” e onde Sofia dança na companhia de rapazes e o irmão se consome a um canto. Depois, vem o diálogo que soa forçado no tal filme de silêncios: “Lembras-te do que me prometeste?”, diz ele. Ela: “Sim. Mas isso foi quando éramos pequenos.” Os gémeos vivem quase sozinhos numa casa que já foi nobre e, agora, se desmorona. São filhos de pais separados, uma mãe ausente e um pai francês, escritor, que deixa comida à porta do solitário do andar de cima.

Martins teve a ideia ao ver um vídeo do campeão mundial de desenho de círculo perfeito. E construiu a história que poderia estar por trás dessa imagem poderosa, contranatura. Pensou no incesto, no irmão fechado sobre si mesmo, a família fechada sobre si mesma, o amor circular de um gémeo por outro, onde a finalidade é regressar ao princípio, quando os dois eram mais ou menos a mesma coisa na barriga da mãe. É uma ideia com a grandeza e os perigos da tragédia – demasiado grande para se poder fugir dela. E “Como Desenhar Um Círculo Perfeito” passa o tempo a fugir à sua ideia. Guilherme e Sofia quase não estão juntos e, quando estão, não há paixão porque Sofia não está verdadeiramente lá. Depois, Guilherme sai de casa e passa o filme longe de Sofia porque descobre que ela se entregou a outro rapaz – e o filme morre porque nunca se sente a ausência ou a presença de Sofia. Uma obra sobre a relação de duas pessoas que opta por acompanhar apenas uma, precisaria de fazer a outra pairar sobre tudo. Mas não faz. Sentimos a angústia de Guilherme, mas Sofia não faz parte deste círculo. É uma linha recta à margem ou um fio que se desprendeu e seguiu outra direcção. Então, tentamos seguir Guilherme. Vemo-lo com o pai que não tem qualquer razão necessária para ser francês. Tentamos agarrar-nos à história do vizinho de cima, mas fica por explorar. Ouvimos o pai mandar Guilherme embora e ficamos a perguntar-nos porquê. Tudo o que aprendemos aconteceu numa curta cena em que pai e filho fazem o jogo do galo. O pai diz: “Fazes círculos perfeitos, mas perdes sempre.” E queremos gostar mais do filme. Mas Guilherme volta a casa e, de repente, Sofia está ardentemente à sua espera. Porquê? Que mudou nela? A linha recta deu a volta ao mundo e regressou? E sentimos que, desta vez, a geometria foi imperfeita. Faltou a necessidade, o sentido íntimo, a lógica, a perfeição do círculo.

AB

i, 2010.05.06

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