não me lynches


Estávamos em 2001. Acabara de estrear Mulholland Drive e eu corria para o King, para assistir à que me parecia, de longe, a sessão mais apropriada, a da meia-noite. À entrada, cruzava-me com o público que saía da apresentação anterior. Era uma massa de gente que levitava, de olhar perdido, a esforçar-se por regressar ao contacto com o mundo quotidiano, exterior a Lynch. No meio dela, esbarrava num antigo colega do curso de Filosofia, com a mesma expressão alheada da restante turba, mas um sorriso imenso, infantil no rosto. “Gostaste?”, perguntei, de modo simplório. E a resposta veio simples, mas luminosa: “Epá! Não entendi nada, mas venho mesmo com a sensação de que acabo de assistir a uma coisa muito importante!”
Nem mais. Era isto mesmo que confirmaria três horas depois. E é esta a definição mais simples de Lynch, aquela que até uma criança entenderia. Mas é também precisamente o que não acontece em INLAND EMPIRE. E aí reside, portanto, todo o seu fracasso: não só não entendemos nada como não queremos entender como suspeitamos, ainda, de que nada há para entender. E pior, bem pior: não há qualquer vestígio de se estar a assistir a algo importante. Antes parece – e parece mesmo, raisparta! – que assistimos a um logro, três horas e oito intermináveis minutos de filme que Lynch faz para si próprio e, na melhor das hipóteses, à laia de brincadeira para os amigos, como parecem comprovar, cabalmente, os créditos finais, corridos sobre uma tresloucada cena de alegria vinda não sabe de onde, ao som de Nina Simone, Ben Harper, o marido da protagonista Laura Dern, ao piano, Nastassja Kinski e Laura Harring a piscar o olho a Dern (como se não tivéssemos entendido já a piscadela ao longo de todo o filme).
Isto já seria suficientemente mau, mas vai mais fundo. É que nem os amigos entenderam. Irons e Theroux confirmaram-no em diversas entrevistas e Dern, que esteve na origem da ideia do filme e o co-produziu, confessava, em Veneza, a sua ansiedade em assistir à antestreia para ver se percebia, por fim, o que andara a fazer ao longo dos últimos dois anos.
INLAND EMPIRE é, facilmente, o pior filme de uma carreira extraordinária. Tem-se paciência para resistir dentro da sala, particularmente durante a última e insuportável hora, porque é Lynch e Lynch é um dos maiores. E não é da actualidade; é de sempre. Mas esta é uma imitação barata de si mesmo, que resulta até perigosa para o respeito e admiração há muito consagrados à sua obra.
No menor número de palavras possível, trata-se da história de uma actriz que dá por si a viver na realidade a personagem que interpreta num filme amaldiçoado, “On High Blue Tomorrows”. A primeira ideia para o filme surge quando a própria Dern bate à porta do próprio Lynch para lhe dizer que é a nova vizinha e que têm de voltar a trabalhar juntos. Chegam outros repetentes como Justin Theroux e Richard Dean Stanton; vem Jeremy Irons; vem até Júlia Ormond (desaparecida desde que, em dois anos, com Sabrina, First Knight e Legends Of The Fall, parecia destinada a nada menos que o topo do mundo, e aqui reaparece feia, quase irreconhecível). Lynch compra uma câmara digital de baixa resolução, fica maravilhado com o aspecto (desagradável) da imagem e começa-se a gravar, às vezes com guião, outras sem, outras com o texto a ser escrito à medida que as coisas vão acontecendo no set; deixa-se muita coisa para ser escrita na sala de montagem – não podia dar bom resultado. Faltava um título, mas, felizmente, lá Dern se lembrou de dizer que o marido, Harper, era de um sítio chamado Inland Empire, no interior da Califórnia.
Do amontoado de coisas que podiam dar boas ideias, Lynch achou que precisava mesmo de voltar a falar sobre Hollywood, a sua periferia, os caminhos sombrios até lá. Então, de novo, vêm os jogos de espelhos, o cinema, o realizador, a actriz aspirante, a troca de identidades, a confusão e mimetismo entre filme dentro do filme e pretensa realidade; vem até outra vez, por que não?, uma tensão lésbica no ar. Vem, como de costume, gente a vaguear por corredores e a abrir portas e a ir dar a cenários que antes não estavam lá e que foram deslocalizados; o interior saloio americano; os cortinados vermelhos. Depois, põem-se uma série de frases que variem os filmes anteriores e criem uma aura de enigma complexíssimo e terrível: há um homem, não me conheces, lembras-te de mim, vai acontecer uma desgraça, o que aconteceu ontem só vai acontecer amanhã, o amor, o amor, coisas tão estranhas que o amor faz, vai haver um homicídio, ó desgraça, ó tragédia. Repetem-se algumas cenas até à exaustão para dar mesmo a ideia de que são importantes e que há ali qualquer coisa que ainda não vimos (Bolas! Falta o anão! Como é que é possível? Um filme de Lynch, tão misterioso, e não tem um anão?). Depois, para confundir mesmo o pessoal, trocam-se os objectos de sítio, as deixas de personagem, as personagens de circunstância: o número 47, a chave de fendas, a seda com o buraco do cigarro, o relógio, as horas que são.
Isto é INLAND EMPIRE. Salvam-se duas ou três cenas (Dern com os sem-abrigo; Dern com as “amigas” adolescentes e/ou prostitutas) e a banda sonora. Na melhor das hipóteses, é um filme sobre uma actriz bem sucedida a terminar na decadência da prostituição ou uma prostituta decante a sonhar ser actriz, caminhando sobre o Passeio da Fama, perto de paragens de autocarro para Hollywood. O resto não interessa nada. O texto é circular, vazio, inconsequente (três adjectivos que, aliás, se aplicam muito bem ao todo do filme. Mais estes: desconexo, ilógico, aborrecido). Onde, até hoje, Lynch conseguia mistério, aqui há absurdo, para não dizer estupidez; onde, antes, se alimentava uma tentativa de descobrir a verdade, mesmo sabendo que ela nunca seria encontrada, aqui percebe-se, muito rapidamente, que não há verdade alguma. E quando, passados ainda poucos minutos de fita, surgem, pela primeira vez, os tipos vestidos de coelho, numa espécie de sitcom ou peça de teatro (a média-metragem Rabbits, feita em 2002, que Lynch aqui quis, por força, enxertar), as palavras saem sozinhas da nossa boca: não me lynches.
O que sempre pensei sobre os filmes de Lynch, e que ele próprio, em entrevistas ao longo dos anos, foi confirmando, é que o seu cinema não é para perceber, mas para sentir. No caso de INLAND EMPIRE, sente-se mal. Sente-se náusea. Pior que tudo: sente-se tédio.

[texto publicado na Atlântico nº 26]
AB

Comentários

C. disse…
Podia assinar por baixo. Que desilusão...
Anónimo disse…
(que bom! Temia que os primeiros comentários fossem de lynchianos fanáticos a preparar-se para me fazer a folha… Obrigado.)
purita disse…
por acaso nunca fui especialmente fanática de D. Lynch, mas acho que se generalizou a ideia que o incompreensível é genial! a mim tb me entedia, acho que é mais isso!
noite americana disse…
Eu só não assino por baixo por que não vi e nem faço tenções de ir ver... :) DM
C. disse…
Eu adoro Lynch! Mas este deixou-me triste... por não ter gostado, não ter sentido. Porque o compreendido podia passar sem ele.
Anónimo disse…
Nem mais, Wasted. A questão é mesmo essa: a decepção só é tão grande por ser Lynch e gostarmos tanto dele. Ser Lynch a comportar-se como uma banal imitador de si mesmo.

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