olhe directamente para o sol


Digamos assim: Danny Boyle está-se nas tintas para Al Gore. E para os cientistas e a opinião pública e a lógica e mesmo a simples constatação de facto de que o mundo está, efectivamente, a aquecer de modo gradual e irremediável. De resto, o último dos problemas que o Planeta teria de enfrentar seria uma morte do Sol, dado que, quando isso acontecer, já a Humanidade terá ido desta para melhor há uns bons milhões de anos. Pode ele fazer isso: borrifar-se para a realidade? Pode. Porque isto é cinema.
O director de, por exemplo, Trainspotting-filme-de-uma-geração e do último Millions, obra belíssima, inclassificável e gloriosamente ignorada entre nós, chamou, de novo, o argumentista Alex Garland e sentaram-se a trabalhar à volta de um filme de ficção científica que voltasse a escapar às simples categorias com que os videoclubes se entretêm a dividir as águas. E Garland, autor do romance The Beach, que Boyle passara à película, e do argumento de 28 Days Later…, escreveu um plot que é drama, thriller e, a partir de dado momento, quase filme de terror. E que plot é esse que parece troçar de An Inconvenient Truth? Bom, é mais ou menos isto: avançámos cinquenta anos no tempo e a Terra sofre um inverno solar. A estrela está a perder o seu fulgor e, agora, é preciso reincendiá-la. Ou melhor: como diz o filme, fazer nascer um novo astro a partir daquele. Para tal, mandou-se uma equipa de astronautas para o espaço que desapareceu, há sete anos, sem deixar rasto. Agora, oito novos cientistas transportam, a bordo da Ícaro II, a bomba nuclear que, lançada contra o Sol, o reiniciará.
Sunshine, no seu muito acertado título original, é, repitamos, um filme “one of a kind”. É estranho. Um daqueles com um ambiente tão poderoso que nos persegue até chegar a casa, muito depois do fim da sessão. É um pedaço de cinema tremendamente frio, o que se torna particularmente bizarro se tivermos em conta a sua temática. E é, por fim, um filme que vem falar de esperança e da própria salvação para, no final, nos deixar a sentir que nos terão, talvez, feito muitas coisas, mas nenhuma delas foi sequer parecida com salvar.
Obrigado a superar um cast a atirar para o fraquinho onde nem o óptimo Cillian Murphy arranca grande prestação e uma trama que não averigua mais que a epiderme das personagens, Boyle arranca um filme memorável. Não é uma obra-prima e, sem campanha promocional visível, vão, de certeza, contar-se pelos dedos os espectadores que terá em Portugal, mas estamos diante de um dos melhores sci-fi dos últimos bons anos. Sunshine é uma exposição de frescos maravilhosos de um Cosmos, a um tempo, hostil e sublime nas imediações do Sol, um pequeno tratado sobre a loucura e uma crónica decepcionada com a espécie humana a fazer-se ao épico. Em poucas palavras e para regressarmos ao título, este é um filme sobre o que acontece se desrespeitarmos a regra base inscrita nas etiquetas de qualquer par de óculos de sol: “não olhe directamente para o Sol”. Sunshine olha, Danny Boyle olha, as personagens olham, e, a partir desse momento, cegam. Precisamente. Sunshine, não é a iluminação, mas a cegueira. É uma questão de o espectador se dispor a abrir os olhos.

[texto publicado na Atlântico nº 26]
AB

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