Rock’n’roll suicide

Quando Donatello se inspirou em David Bowie para esgalhar o seu David, ninguém estranhou. Não é só a androginia, a provocação da mão pousada no flanco em perene desafio, é a mudança feita a identidade mesma. O ser é aqui o mudar, o estar a caminho de outra e outra coisa enquanto caminho para dentro, para si.

Quando somos uma coisa dentro de outra coisa dentro de outra coisa e já não sabemos bem qual delas somos, sendo que somos todas elas, somos Bowie. A dificuldade é também a da linguagem, sempre melhor preparada para vestir a identidade de coisas que nos identifiquem ou, o que é o mesmo, nos distingam. A melhor maneira de identificar alguém de forma inequívoca é pela imobilidade. Daí a eficácia das pedras tumulares no esquema geral para identificar as pessoas. Supostamente, aquilo que se é é aquilo que em cada é permanente, profundo, estrutural, seja a altura, seja o grupo sanguíneo, a cor dos olhos, o código genético, ou a impressão digital. A linguagem não favorece a expressão da diferença de cada em relação a si mesmo, excepto se a puder congelar em rótulos sucessivos, eles próprios estáveis. E veja-se o que a psiquiatria conseguiu com isso. Muros mais altos que os dos hospitais, só nas prisões. A mudança teve que ser romanceada, erotizada ou politizada para se tornar sexy, ou seja, desejável. Parecer já é menos que ser. A indefinição é menos definição. A ambiguidade confunde e exige clarificação. É isso: ser é luz, parecer é escuridão. E atrás da escuridão vêm os costumes e atrás dos costumes vem sempre alguém que nos diz tem cuidado.

Suburbano, adolescente, epiléptico, Ian Curtis ouvia Bowie. Claro. Ian Curtis suicidou-se após ouvir «The Idiot» the Iggy Pop e de ver o filme «Stroszek» de Werner Herzog. «Stroszek» termina com o suicídio de um cantor. Bom, o leitor poderá não ter visto «Stroszek» (eu não vi), mas se calhar viu «Velvet Goldmine». «Control», o filme de Anton Corbijn sobre Ian Curtis e os Joy Division, estreou esta quinta-feira. E isto tudo vinha, obviamente, a propósito destas linhas: «Time takes a cigarette, puts it in your mouth/You pull on your finger, then another finger,/ then your cigarette/The wall-to-wall is calling, it lingers, then you forget/Ohhh how how how, youre a rock n roll suicide».


Rui Branco

[publicado no MEIA HORA de hoje, 16-11-2007]

Comentários

Humboldt disse…
A imagem - do Ian Curtis a ver o "Stroszek" - tem qualquer coisa de irreal. Seria, seguramente, noite escura. Por vezes, as aparências brilham no escuro. Irónico, Ian Curtis ser uma "estrela"?
Anónimo disse…
Um pequeno off-topic,

Não vai haver textos sobre American Gangster?

a semelhança The Brave One

abraço.

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