O círculo do Outro e o círculo do Mesmo (a propósito de New World)

A Morte de Colombo. Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito, de Eduardo Lourenço, reúne catorze ensaios, escritos na sua maioria nos anos dos centenários das viagens de Colombo, Gama e Cabral. O tema é o do encontro entre o descobridor europeu e o índio, percebido nos termos de uma definição e contra-definição de identidades, e respectivas ética e epistemologia. «O círculo do Outro e o círculo do Mesmo», nas palavras de Lourenço.
Lourenço começa por uma precisão: o Ocidente a que hoje se chama Ocidente não tem nada que ver com o que até à I Guerra Mundial foi «o Ocidente», e que era a Europa. Neste tempo histórico mais largo, os Estados Unidos, e a América em geral, não são, e continuam a não ser, o Ocidente, mas Colónias filhas do Ocidente. A singularidade da Europa não está na sua capacidade guerreira, nem no seu papel na ordem do saber, mas no de descobridor, de comerciante e, em concreto, de colonizador. Essa colonização é irreversível e constitui o pecado original, a marca específica do seu destino, que nunca lhe será perdoado. A este título, poucos serão mais representativos que Gama ou Colombo. As controvérsias que rodearam os centenários aí estiveram para o provar, e, bem vistas as coisas, para os celebrar.
A visão europeia do Novo Mundo oscila entre a de uma outra Humanidade, lavada de pecado original, espelho ampliado do Velho Mundo e a degradação rápida da visão idílica de Colombo, qual nova queda do Paraíso, espelho invertido da Velha Europa. Se os Estados Unidos se vêem como espelho ampliado da Europa, já a América Latina vê-se como espelho invertido. Esse país que os norte-americanos sentem como novo início, um país onde Colombo vive ainda, na sua Arca de novos Noés, onde cabe a Europa toda e algo mais, esse é o país que Walt Whitman cantou como uma manhã fresca e promissora. Em «I Hear America Singing» Whitman evoca o dia pós-diluviano em que a Arca se abre, da porta aberta à árvore mais próxima corre um estendal de roupa lavada, dia no qual o pedreiro, o carpinteiro, o sapateiro, a mãe, todos cantam como quem dá graças «to what belongs to him or her and to none else». Ao passo que nos Estados Unidos a festa de Colombo é festejada sem complexos, na América Latina Colombo morreu já, se bem que a pouco e pouco, enquanto o Índio imortal ressuscitava. Ao recusar-se a celebrar o centenário colombino, e vendo na descoberta com maiúscula afinal um achamento com minúscula, o continente descoberto reescreve a própria história. Doravante, prefere ser o continente nu que antes era.
Europa e América entreolham-se numa espécie de espelho mútuo, a um tempo absorvendo e recusando a imagem despedaçada que enviam uma à outra. É sintomático que o continente americano passe hoje por uma «indianização». A cultura que produziu o filme «Dances with Wolves» de Kevin Costner, nota Lourenço – e o mito da Arca e do recomeço em «Waterworld» do mesmo Costner, noto eu – é uma cultura à procura de uma pureza pristina, entretanto toldada pela culpa.
A cultura latino-americana de raiz espanhola exibe as marcas deste passado, tendo nutrido um complexo de fascínio/ressentimento em relação à cultura europeia. Lourenço invoca os exemplos de Paz, Neruda e Fuentes. Essa mistura de fascínio e ressentimento constitui, como se sabe, a fórmula química da ironia, a ironia presente no poema «Noción de Patria» do poeta uruguaio e uma vez exilado Mario Benedetti: «Diré ante todo que me asomé al Arno/que hallé en las librerías de Charing Cross/cierto Byron firmado por el vicario Bull/en una navidad de hace setenta años.//[…] Quizá mi única noción de patria/sea esta urgencia de decir Nosotros/quizá mi única noción de patria/sea este regresso al proprio desconcierto».
Desconcerto este que nasce da sensação de perda trágica, de dilaceração íntima, tão diferente, na visão de Lourenço, da alegria e jovialidade da cultura brasileira. O Brasil teria nascido com naturalidade da matriz colonizadora, que não foi rejeitada, nem apropriada tendo em vista a construção de algo diferente. O «português» passou a ser «brasileiro», os valores europeus foram adaptados às novas realidades da cultura do Brasil e aos valores africanos, o índio foi, de imediato, ou integrado, ou marginalizado.
O modernista brasileiro Oswaldo de Andrade conta no Manifesto do Antropófago, de 1928, um mito diferente: o da devoração. O índio que devora o padre Pêro Fernandes de Sardinha deglute, digere e integra-o no seu corpo e cultura. Segundo o programa de Haroldo de Campos (poeta concretista), os brasileiros não deveriam imitar antes «assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos». Típicos desta tentativa de exprimir a especificidade do Brasil, e ao avesso da ideia de parto sem dor, foram o «Cinema Novo» (ao qual Lourenço dedica um capítulo) e o tropicalismo de Caetano e Gil. Sobre isto, diz Caetano em A Verdade Tropical: «No entanto, há pertinência em notar na Tropicália (na esteira da Antropofagia) uma tendência para tornar o Brasil exótico tanto para os turistas quanto para brasileiros. Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro católico tropical». Este é, contudo, um remate que Eduardo Lourenço não faz.

RB

[Texto antes publicado, ligeiramente mais curto, no suplemento «6ª», do DN]

Comentários

Unknown disse…
saudações
estou a fazer um trabalho para a faculdade e gostaria de utilizar alguma informação contida no seu texto. Assim, agradecia indicação da autoria de modo a que a possa colocar na bibliografia consultada. obrigado

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