A Beleza Romana de Anna Magnani
"I never saw a more beautiful woman, enormous eyes, skin the color of Devonshire cream."
Tennesse Williams sobre Anna Magnani
Não era de
uma beleza típica como a das Estrelas de Hollywood. O seu cabelo era negro e
emaranhado e aparentava ser incontrolável, em oposição aos cabelos
platinadamente louros e cuidadosamente armado que era usual na época as divas
usarem no grande ecrã.
Não era
particularmente magra, faltava-lhe o porte elegante e aristocrático de uma
Katherine Hepburn, ou as linhas vincadas e cintura de vespa de uma Garbo. Não
tinha um rosto suave, jovem e angelical de uma Ingrid Bergman, nem o cobria de
maquilhagem ou exigia que a iluminassem de forma a que todas as rugas, traço de
buço ou olheiras desaparecessem, como fazia Dietrich.
Não, Anna
Magnani não era de todo uma diva óbvia.
Mas vai dai, nenhuma das atrizes de Rossellini o foram.
Pela
altura que entra na nossa memória cinematográfica, com Roma, Cidade Aberta
(1945), Magnani já era uma mulher feita, a caminhar para os quarenta.
Poucos são os que hoje recordam, ou mesmo que viram, as suas primeiras
interpretações: Os pequenos papéis onde interpretava a camareira da rainha, ou
a jovem e provinciana amante de um senhor rico. Participações de poucos
minutos, uma semi-figurante nesse cinema algo estéril Italiano do pré-guerra,
pouco ambicioso e demasiado preso a uma vaga ideia do que seria Hollywood e do
como fariam cinema os Americanos, aquilo a que Itália apelidou de O Cinema
Telefones Brancos.
E depois
terminou a Guerra.
Com Roma
ainda em escombros Rossellini sabe que, mais do que nunca, é necessário filmar
a realidade. Recupera pedaços de película fora de prazo, dorme com Condensas
idosas de forma a que estas lhe
financiem a sua idealização de cinema e por fim chama Magnani, sua amante à
época e a única atriz profissional do projeto, para o acompanhar nessa grande
aventura que foi Roma, Cidade Aberta iniciando a enorme revolução do
Neo-Realismo Italiano.
Tinha 37 anos
e a crueza da sua interpretação irrompe pela tela com todo o poder de um
furacão, ou de uma outra qualquer catástrofe natural: trágica, devastadora e
hipnoticamente bela, de não conseguirmos tirar os olhos a cada vez que surge em
cena, como qualquer força da natureza.
Sem o
saber que o era, Magnani foi uma atriz de método antes de Stanislavski, Brando
e Kasdan estarem nas bocas do mundo e uma influencia incalculável para toda uma
nova geração de atrizes (e até mesmo de atores), que descobriam que podiam
representar na tela, a vida tal como ela é.
Em cada
uma das suas interpretações, Magnani traz com consigo isso mesmo: a vida tal
como ela é. Cada uma das suas rugas, ou das suas furias contam uma história, mas trazem igualmente o seu passado, a sua “Romanicidade”. O conflito e a
vergonha de ser uma filha bastarda de pai incógnito criada pelos avós e por
freiras, mas simultaneamente o orgulho de ser uma genuína da filha, ou melhor,
uma genuína mulher de Roma, a grande cidade do Velho Império.
A mulher
que cresceu sem nada a não ser o vincado orgulho e o temperamento Romano
(Fellini, após o termino da relação em que Magnani ao saber que este iniciara
um caso com Ingrid Bergman lhe despejou um prato de Spaghetti Puttanesca pela cabeça no mais famoso dos restaurantes de
Roma da época, costumava brincar dizendo que a atriz era verdadeiramente
Romana, pois tinha nascido com os dentes cerrados no próprio fígado), A mulher que
não vira a cara à luta nem se deixa vergar, que é independente e feroz,, capaz
de enfrentar um esquadrão Nazi para salvar a sua família.
E por de
baixo dessa força aparentemente inquebrável, surge-nos uma fragilidade quase
adolescente, na busca de uma figura de príncipe encantado. Não o homem mais
rico ou mais belo, mas o que a acompanhe, que a ame, mesmo que marginal, que
esteja à sua altura e a quem ela chame o seu homem. E uma vez encontrado esse
homem certo, então as suas personagens entregam-se e deixam que este rompa por
todas as suas defesas (e sejamos honestos, por muito cativante que seja a
beleza etérea e fria de uma Grace Kelly, não consegue provocar-nos um desejo
tão carnal, comovente e primordial como a falível e humana beleza de Magnani ).
De Itália
(onde se tornou um estandarte da representação neo-realista, através de papéis
de mãe solteira, prostituta ou de mulher que questionava os códigos morais da
igreja, muito antes deste género de personagem ser uma norma no cinema) até a
Hollywood foi um pequeno passo, mesmo que um pequeno passo relutante. Trocou o
Neo-realismo pelas peças que Tenesse Williams escreveu para si, embora achasse
que o seu fraco inglês não faria justiça ao texto do amigo, nem à sua
capacidade de representação.
No meio de
tanta resistência e da recusa de participar na versão da Brodway acedeu
participar na versão cinematográfica de A
Rosa Tatuada (1955) papel que lhe
valeu um Oscar. Dez anos após a sua “descoberta” em Roma Cidade Aberta, Magnani era finalmente reconhecida como uma das
mais importantes atrizes (senão a maior) da sua geração, e confirmava-se definitivamente
aos quarenta e sete anos como uma Sex
Symbol mundial.
Quatro anos seguidos e iria contracenar com com Marlon Brando em O Homem na Pele da Serpente (1959), num argumento escrito especialmente por Tenesse Williams para os seus dois actores preferidos e que prometia ser senão um duelo, pelo menos uma parceria de titãs. Rezam as histórias que ego de Brando, o feitio de Magnani e um ainda jovem Sidney Lumet não conseguiram dar ao cinema a obra que o encontro destes dois actores prometia, mas sem ser o filme perfeito, é talvez aquele desde Roma Cidade Aberta em que encontramos a Magnani mais verdadeira, frágil e bela.
Até mais
do que Rossellini, Magnani marcou uma época e reabriu as portas do Cinema Americano aos atores e
cineastas Europeus, à sua geração neo-realista, aos seguidores da Nouvelle
Vague e aos que vieram depois. Aliás, não é difícil encontramos ainda hoje traços seus em atrizes como
Penélope Cruz, Mónica Bellucci e até Marion Coutillard (falando somente de actrizes Europeias). Traços e influências... porque não voltou a surgir ninguém com a sua chama.
Faleceu aos 65 anos, numa altura em que se afastava gradualmente dos grandes papeis de cinema e em que se sentia menos confortável com o inevitável avançar da idade. A sua ultima participação é uma curta, mas deliciosa, passagem por Roma de Fellini (1972), algo raro dentro da nossa memória cinematográfica: uma Magnani a cores, numa pequena rabula em que se interpreta a si mesmo. Esteve quase para não participar, mas Fellini prometeu-lhe que era uma cena curta e convenceu-a com um simples frase:
"Não posso fazer um filme sobre Roma sem ti... és um símbolo desta cidade!"
MS
Comentários